"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

CRIMES DE OPINIÁO

Se cultivasse um pomar, eu não seria repreendido. Mas, pelo pastoreio da alma, pelo cultivo da mente e do intelecto, sou devorado
A Páscoa celebra a ressurreição do Crucificado. O mestre da Boa Nova morreu como viveu e como ensinara. Sua prática foi o que ele deixou à humanidade. Sua conduta perante os acusadores, perante os juízes, perante os carrascos e perante toda espécie de calúnia e ultraje. Também seu comportamento na cruz. O reino de Deus não é algo que se espere; não tem um ontem nem um amanhã; não virá dentro de mil anos; é uma experiência do coração e está em toda parte , reconhece mesmo um autodeclarado anticristo.
Pois bem, o cristianismo foi muito além da moral de escravos, ressentidos e decadentes denunciada por Nietzsche. Transfigurou-se em manto sagrado, acolhendo um atávico e universal sentimento de solidariedade. Lançou também as sementes de um futuro de igualdade entre os homens. Fincou as raízes da civilização ocidental, frondosa árvore milenar que lança aos céus o humanismo e as ciências, a democracia e os direitos humanos, a liberdade religiosa e a educação laica, entre muitos outros galhos da modernidade.

Distância oceânica entre as lições de Cristo e a prática da Igreja. Às 5 horas e 30 minutos da manhã de sua execução, em 19 de fevereiro de 1600, Giordano Bruno foi levado acorrentado, vestindo uma túnica branca até o tornozelo. Dia de festa em Roma, o caminho apinhado de curiosos. Conforme avançava a procissão, Bruno reagia à multidão zombeteira com citações de seus livros e ditos dos antigos. Um longo espeto de metal foi então enfiado na bochecha esquerda, prendendo sua língua, saindo pela bochecha direita. Outro espeto foi enfiado verticalmente, furando seus lábios. Juntos, os espetos formavam uma cruz. Hereges eram queimados com madeira seca e pouca fumaça, para não sufocarem. As chamas queimando-os e cauterizando as feridas, até envolvê-los, causando a morte pelo choque. Na última tentativa de salvar sua alma, um padre inclinou-se sobre o fogo com um crucifixo, mas Bruno virou a cabeça , registra Michael White, em O papa e o herege (2002).

Por também imaginar outras possibilidades - um Brasil livre e republicano, como a América do Norte -, no dia 21 de abril de 1792 foi enforcado, decapitado e esquartejado Tiradentes. Se cultivasse um pomar, eu não seria repreendido. Mas, por cultivar a mente e o intelecto, sou devorado , reconhecia Bruno ante a Inquisição.

23 de abril de 2014
Paulo Guedes, O Globo

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