"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

NATAL EM MADRI


Começou nova moda em São Paulo, a invasão de shoppings nestes dias natalinos. Os jovens – eufemismo que os jornais encontraram para baderneiros – marcam encontram pela Internet em um shopping qualquer, invadem, fazem arrastão, roubam e depredam as lojas que não tiveram tempo de fechar. Dão a isto o simpático nome de “rolêzinho”.

São ressentidos, tanto da periferia como da classe média, que não suportam ver pessoas comprando o que não podem comprar. A moda vai pegar e se repetirá nos próximos anos, pois a polícia não prende ninguém. Espero para breve a invasão do Pátio Higienópolis, aqui ao lado de casa, que há muito tem sido alvo da ira dos ressentidos. É um shopping portentoso e, como fica no centro de um bairro judeu, é associado a judeus. Ora, judeu é associado a ricos. É a finada luta de classes com roupa nova.

Quem me acompanha, sabe que vivo longe do consumo. Se compro dois pares de calças ou três camisas ao ano, considero que fiz um despilfarro, como dizem os espanhóis. Meu bem mais valioso é uma biblioteca, formada ao longo dos anos e das viagens. Mas, se vivo longe do consumo, sou um defensor incondicional do consumo. Consumo, por supérfluo que seja, gera riqueza. Os “jovens” de São Paulo me lembram um distante natal em Madri.

Sempre que viajo à Europa, procuro despedir-me da Europa em Madri. Como em geral viajo em dezembro, para fugir ao verão tropical, sempre me deparo com a histeria natalina dos madrilenhos, que invadem o centro da cidade com a fúria de formigas vorazes, buscando armazenar vinhos, presuntos e queijos - e qualquer coisa que estiver à venda - para as festas de fim de ano.

Não que infestem as ruas só em dezembro. Os madrilenhos têm fama de callejeros, isto é, de gente que adora as ruas de sua hermosa Corte y Villa. Lá, um brasileiro redescobre o prazer da flânerie, esporte que a feiúra e violência de nossas ruas – e a ditadura televisiva da rede Globo – há muito nos fez esquecer. Todas as noites, multidões se jogam nas ruas, em busca de cafés, restaurantes e teatros e mesmo em busca das próprias ruas, onde o simples flanar é prazeroso. Para quem sai de nossas ruas hostis e quase desertas, é algo insólito ver aquela massa informe invadindo o centro todo da cidade, até uma ou duas horas da madrugada. Nos fins de semana esta multidão se duplica, e nos dias de dezembro torna-se quase histérica.

Madri para mim se resume em uma geografia não muito extensa, que vai da Plaza Mayor e Palácio Real até o Paseo de Recoletos, passando naturalmente pela Puerta del Sol, Plaza Santana e a região de Huertas e Lavapiés. Ali reside toda a vida da cidade. Meu maior drama, se passo apenas uma semana, é rever todos os cafés e restaurantes onde um dia vivi, amei e fui feliz. Ponto de honra é o café Oriente, frente ao Palácio Real, de uma iluminação macia e mármores e veludos aconchegantes. Nos anos 80, aos domingos, minha vizinha de mesa era a Geraldine Chaplin, sempre rodeada de mulheres lindas, o que em nada lhe favorecia: só servia para realçar seu perfil de Olívia Palito.

Em Madri, como os madrilenhos. Após algumas cañitas no café Oriente, vou bater ponto no El Alabardero, ao lado da ópera. O almoço, a las três del mediodía, pode ser no La Bola, reputado por oferecer o melhor cocido madrileño da capital. Ou inicio a jornada por outra ponta, pela Recoletos. Visita obrigatória ao centenário El Gijón, com mais umas copitas no El Espejo, de interior deslumbrante. Consta que lá Jorge Luís Borges teria alimentado sua obsessão pelos espelhos. Para as lides noturnas, Plaza Santana, a Cerveceria Alemana e o Café del Prado, com janta nas cercanias de Huertas. Fim de noite, para mim sempre um só, o Venencia, na Calle Etchegaray, onde viveu Don Ramón del Valle Inclán. Etchegaray foi um ministro de Finanças espanhol que obteve o prêmio Nobel ... de Literatura. Don Ramón, galego irascível, não nutria maiores simpatias pelo conterrâneo ilustre, e sempre que dava seu endereço, insistia: Calle del Viejo Idiota. Segundo a lenda, sua correspondência sempre chegava ao destino.

É nesta Calle del Viejo Idiota que se situa, quase em frente ao Hotel Inglés, o Venencia, para mim um dos ambientes mágicos da Espanha e da Europa. Abre às cinco ou seis da tarde e nada tem demais. É um espaço comprido e estreito, um balcão e quatro ou cinco mesas. E muita poeira pelas paredes e teto. Se um dia for limpo, adeus encanto. Só serve jerez, em várias versões, manzanilla, oloroso, maderoso, palo cortado. A conta do freguês é escrita com giz no balcão. Atinge seu momento de glória a partir de las nueve de la tarde - como se diz por lá - quando os habitués se acotovelam nos balcões e se entregam com efusão aquela charla barulhenta dos madrilenhos. O bar é modesto e o jerez é baratinho. Mas desconheço café mais aconchegante no mundo. Não por acaso, há mais de trinta anos, sempre me hospedo no Hotel Inglés, para não perder o rumo após as libações finais de cada dia.

O leitor já deve ter desconfiado que, nesta idade, cultura para mim pouco ou nada tem a ver com museus ou bibliotecas. Estas, freqüentei-as em meus dias de jovem, quando me sentia na obrigação de conhecê-las por dentro. Hoje, penso já ter lido o suficiente para entender o mundo. Farto de literatura, só tenho buscado ruas, arquitetura, bares, rostos e gestos. Para não dizer que abandonei de vez os museus, na Espanha nunca deixo de visitar El Museo del Jamón. Quem os conhece, me entenderá. São cafés – em verdade uma cadeia de cafés – cujos tetos e paredes estão coalhadas de presuntos. Certa vez, li em um jornal que um homem morrera soterrado por presuntos. Só pode ser na Espanha, pensei. Era.

Em um desses dezembros, quando buscava um singelo Rioja para fim de noite no Inglés, ao cair na rua tive de enfrentar aquela multidão furiosa, compacta, invasiva, imiscuindo-se em todo e qualquer lugar onde houvesse algo para comprar. Investi de ombros contra a massa e lutei bravamente por meu vinho. Até aí, nada demais. Lá pelas tantas, em plena Puerta del Sol, deparei-me com um grupo de católicos vestidos de andrajos – simulando pobreza, pois pobres não seriam – que ostentavam cartazes contra a sociedade de consumo e o consumismo. Se já não nutro muita simpatia por estes senhores, naquela noite meu sentimento foi de asco.

O que aqueles papistas pareciam não entender é que consumo, por estúpido que seja, gera trabalho e riqueza. Aquela histeria desmesurada dos madrilenhos beneficiava o último produtor de queijos, presunto ou vinhos, nos confins de uma vila qualquer na Espanha ou na Europa. Lubrificava a ampla capilaridade de distribuição e venda, os setores de transporte e comércio, do país todo. O consumo quase irracional dos madrilenhos azeitava a economia da nação, demonstrava a eficiência plena do capitalismo. Claro que o sentido original do Natal fica empanado, para não dizer abolido. Mas melhor que o culto piegas de um deus obsoleto é assistir o espetáculo de uma economia pujante.

Conquistada minha botellita de Rioja, fugi da massa e busquei uma bodega discreta para continuar minhas leituras. Não imagine o leitor que tais orgias de consumo me fascinem. Mas tenho de convir que são salutares para a saúde das nações. Aqueles gatos pingados católicos, travestidos de pobres e humildes, eram, naqueles dias de festa, os piores inimigos da humanidade.


25 de dezembro de 2013
janer cristaldo

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