"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

FÁBIO ASSUNÇÃO E O PERIGOSO MUNDO DA FALTA DE HUMOR



“Alguém faz piada com câncer?” Faz. E é bom que faça. É necessário que faça. Artigo de Paulo Polzonoff, via Gazeta do Povo:

Leio que celebridades saíram em defesa do ator Fábio Assunção, tema de piadas e memes por conta de seus muitos flagrantes num estado, digamos, bem distante da sobriedade. “Piada tem limite”, argumenta a intelectual Carolina Dieckman. Klebber Toledo (que, descubro pela Wikipedia, é ator) vai além, bate na mesa, se levanta bem devagar, lança um olhar compungido para a câmera, close in, sobe a música (violinos) e pergunta: “Alguém faz piada com câncer?”

Faz. E é bom que faça. É necessário que faça.

A falsa polêmica, felizmente restrita ao Grande Simulacro de Vida© que são as redes sociais, vem a calhar, porque recentemente a Netflix lançou uma série de documentários imperdível para quem gosta de humor (e para os loucos como eu que gostam de pensar o humor). 
Em ‘Larry Charles' Dangerous World of Comedy’, o diretor de ‘Borat’ viaja a lugares agradáveis como Iraque, Libéria e Somália para descobrir do que as pessoas que vivem em meio à guerra, fome, doença e pobreza riem.

E a resposta só surpreende celebridades brasileiras criadas à base do mamão orgânico com açúcar demerara: o ser humano ri de tudo. Absolutamente tudo. 
No Iraque, comediantes arriscam a vida (arriscam mesmo, de verdade, não estou falando de perder uma verbinha via Rouanet aqui ou um papel no folhetim das 18h acolá) para rir das decapitações do ISIS. Na Libéria, comediantes tiram sarro de quem pegou Ebola. Na Somália, nada mais engraçado do que uma pessoa que perdeu as pernas na guerra e que hoje em dia passa fome.

Rir é uma necessidade não só física e emocional, como também espiritual. De um lado, o riso torna a vida mais leve e permite que tenhamos diante das adversidades uma postura mais estoica; de outro, o riso nos aproxima do Divino ao estabelecer uma relação de inequívoca empatia entre o ouvinte/espectador e o tema da piada, seja ele um aidético, um soldado desfigurado pela guerra ou um ex-warlord que comia o coração dos inimigos (literalmente, não figurativamente).

A série documental de Larry Charles (não confundir com Larry David, outro grande comediante que se permite rir de tudo, inclusive e sobretudo de seu próprio narcisismo) dialoga com o livro ‘Hitler Laughing: Comedy in the Third Reich’ [Hitler rindo: comédia no Terceiro Reich], de William Grange. 
O livro fala da tentativa dos nazistas de eliminarem tudo o que era “não-alemão”, o que, obviamente, incluía a comédia (afinal, você já viu um alemão rindo? Nem eu) e da resistência por meio do riso, nem que isso custasse ao comediante a vida ou uma temporada no “spa” de Auschwitz.

Portanto, Carolzinha, não, piada não tem limite. Nunca teve nem nunca vai ter. Qualquer tentativa de se impor um limite à comédia, aliás, esbarra na própria comicidade da proposta, geralmente feita por tiranetes cheios de boas intenções.

Voltando à Grande Dúvida Klebbertolediana sobre a existência ou não das piadas com câncer, vale a pena mencionar só um nome: Tig Notaro, comediante de terceiro ou quarto escalão que ganhou fama depois de montar um espetáculo inteiro falando de seu câncer de mama (ao qual ela vem sobrevivendo) e de suas divertidas consequências: da dupla mastectomia ao inevitável confronto intelectual com a morte, passando pela “compaixão ofensiva”, aquela coisa de ter sua doença cotidianamente usada como plataforma para uma demonstração da virtude alheia.

Ah, mas piadas ofendem, magoam, dirá Carol & Klebber (com dois bês!). Palavras ferem, ui, ui, ui. O mundo das celebridades brasileiras, dessas pessoas que precisam de crachá de artista, infelizmente não percebeu que um mundo sem conflitos não existe e que, se existisse, a própria atividade artística seria desnecessária. 
A arte (ainda que chamar o que esse povo faz de arte seja um exercício de generosidade lexical) só existe porque a vida é deliciosamente conflituosa, porque há choro e riso, alívio e indignação, injustiça e reparação.

No grande circo que é a dramaturgia brasileira, coube a Fábio Assunção, antes galã, o papel de palhaço das sextas-feiras, com o rosto devidamente maquiado de pó (de arroz, de arroz!). Há quem ria – ainda bem. Se Fábio & Amigos são incapazes de se olhar no espelho e soltar uma bela gargalhada, bom, isso é muito mais pernicioso, reprovável e digno de pena e tratamento do que qualquer dependência química.

27 de fevereiro de 2019
Paulo Polzonoff
in orlando tambosi

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