Foi o professor Bruce Yandle, da George Mason University, quem criou o termo "batistas e contrabandistas" para descrever um modelo de regulamentação em que grupos de interesse que normalmente se opõem uns aos outros se unem em prol de um objetivo comum.
Durante a Lei Seca, pastores batistas, contrabandistas e produtores de bebidas alcoólicas queriam que o álcool permanecesse ilegal (eis o artigo original). Os batistas queriam, por motivos religiosos, que o álcool continuasse proibido. Já os contrabandistas também queriam a proibição porque isso lhes garantiria o monopólio do mercado negro, altamente lucrativo.
A Lei Seca foi um caso clássico em que uma mesma regulação foi defendida tanto por aqueles que defendiam seu propósito ostensivo (batistas queriam a efetiva proibição da bebida) quanto por aqueles que se beneficiavam dessa proibição (os contrabandistas).
Assim como a Lei Seca, você certamente já notou vários exemplos práticos em que uma regulamentação estatal que aparentemente era boa para o consumidor e ruim para um determinado grupo empresarial acabou, na prática, favorecendo esses mesmos grandes grupos empresariais em detrimento do consumidor e do bem comum. (Veja aqui uma lista de exemplos práticos brasileiros).
Na ciência política, há dois conceitos que explicam por que isso acontece e por que é normal: a teoria da captura e o fenômeno "batistas e contrabandistas".
Virando o jogo
Quando uma agência reguladora, o Congresso ou mesmo uma prefeitura criam — supostamente visando ao "bem comum" — uma nova regulamentação para um produto ou para todo um setor econômico, é de se esperar que as empresas e os grupos afetados por essa regulamentação não ficarão de braços cruzados.
Ao contrário: farão de tudo para ou impedi-la ou influenciá-la.
Mas o êxito desta empreitada não será igual. Alguns grupos serão mais bem-sucedidos que outros. A tendência é que as grandes empresas e os grupos econômicos mais poderosos, mais ricos e com melhores conexões políticas consigam se sair melhor que as pequenas empresas.
Consequentemente, o regulador acabará sendo capturado pelo regulado — por meio de lobby, subornos, trocas de favores, doações de campanha para os políticos criadores da legislação e, no extremo, até mesmo ameaças.
E, uma vez capturado, é normal que o regulador passe a operar a favor do regulado, inclusive prejudicando sua concorrência direta (alguns exemplos práticos mais abaixo).
Essa captura acontece por dois motivos: assimetria de informação e a teoria das "portas giratórias".
Assimetria de informação: o regulado, obviamente, conhece o próprio setor melhor do que o político e o burocrata da agência reguladora.
Portas giratórias: muitas vezes, os técnicos e os burocratas são oriundos exatamente da área que está sendo regulada. Consequentemente, eles têm amigos, interesses próprios, e até mesmo receberão propostas para trabalhar na área regulada após saírem do setor estatal.
Observe, por exemplo, como quase sempre o Ministro da Fazenda ou o presidente do Banco Central são exatamente pessoas do mercado financeiro, e o Ministro da Agricultura vem do agronegócio.
Fenômenos semelhantes tendem a ocorrer também nas áreas da saúde e da educação, no CADE, na Anvisa, na Anatel, na ANTT, na ANS etc. — os reguladores tendem a ser pessoas com um passado nestas áreas.
Exemplos de consequências não-premeditadas
Além dos interesses próprios, há também quem defenda a regulamentação estatal por puras questões ideais.
Considere, por exemplo, a regulamentação das drogas e das armas.
Estas medidas podem ser defendidas por grupos muito bem intencionados de religiosos, pacifistas, pais de vítimas etc. No entanto, ao mesmo tempo e involuntariamente, acabam favorecendo os contrabandistas do mercado informal — os quais, graças à proibição, passam a deter o monopólio do mercado inteiro.
O mesmo ocorre em várias outras áreas.
Eis um exemplo prático: inspeções sanitárias para o credenciamento de empresas alimentícias.
Os fiscais fiscalizam tanto as grandes quanto as pequenas empresas para ver se estão cumprindo todas as normas impostas pela agência reguladora.
Tais normas, por definição, acarretam vários custos para todas as empresas.
As empresas maiores e mais ricas conseguem arcar facilmente com esses custos. Já as empresas pequenas, não — e isso as expulsará do mercado.
Assim, de imediato, essa regulação afetará a capacidade das pequenas de surgir e concorrer com as grandes.
Mas piora.
As grandes empresas, exatamente por terem mais dinheiro, terão mais facilidade para capturar os fiscais (fazendo conchavos por meio de subornos diretos e outros agrados), e com isso ganhar um passe-livre da fiscalização e ainda assim serem credenciadas. Já as pequenas não terão essa mesma capacidade e poderão até mesmo ser descredenciadas.
Assim, as grandes empresas conseguem uma segunda vantagem: elas não apenas se livraram da fiscalização, como ainda conseguiram manter as pequenas estritamente fiscalizadas (e até mesmo descredenciadas).
As consequências finais: as grandes pagaram para se livrar da fiscalização, as pequenas foram sufocadas pela fiscalização, criou-se um oligopólio das grandes empresas, a população pagou impostos para bancar todo esse programa de fiscalização, e os preços acabaram sendo mais altos do que poderiam ser, pois tanto as grandes quanto as pequenas incorrerem em custos para lidar com essa fiscalização.
Quem realmente ganhou? As grandes empresas e os fiscais. Quem perdeu? As pequenas empresas, os consumidores e os pagadores de impostos (que pagam o custo da fiscalização).
Outro exemplo: imagine que o governo aprove uma lei impondo que as máquinas de lavar tenham uma maior eficiência energética. Quem poderia ser contra, certo?
Mas há um problema: criar novos modelos, alterar a linha de produção das fábricas para produzir esses novos modelos, e cumprir todas as especificações impostas por essa legislação podem custar milhões de reais. Uma gigante do setor, com grandes receitas e significativas margens de lucro, consegue absorver este custo. Já uma fabricante pequena, com apenas um ou dois anos de mercado, com pouca receita e margem de lucro ainda insignificante, não conseguirá. Ela terá de fechar as portas. Isso significa menos concorrência para a gigante já estabelecida, que agora poderá abocanhar mais fatia de mercado e se tornar ainda maior. E cobrar preços mais altos.
Fenômenos idênticos a esses dois exemplos ocorrem também com as normas de segurança do trabalho, com as imposições mínimas de qualidade, com as restrições a medicamentos e com as legislações de proteção ambiental (indústrias com boas conexões políticas são blindadas e liberadas para poluir ao mesmo tempo em que utilizam essas mesmas legislações ambientalistas para impor custos proibitivos a concorrentes menores, impedindo que entrem no mercado).
Todos estes dispositivos legais encontram vários grupos bem intencionados que os apóiam sinceramente por questões éticas e morais, mas que, ao mesmo tempo, acabam favorecendo aqueles que já estão estabelecidos no mercado, pois, ao encarecerem a oferta do bem ou do serviço, acabam expulsando do mercado os concorrentes novos, menores e mais pobres.
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Conclusão
Cada regulamentação tem dois tipos de grupo que a apoiam: os batistas, que cumprem o papel da retórica, da fachada, do marketing; e os contrabandistas, que têm interesse material e são favorecidos.
Os primeiros acabam facilitando a aprovação da medida, mesmo quando não são diretamente ligados aos últimos, que são os reais interessados — com efeito, ambos podem ser até mesmo rivais ideológicos.
Todas as vezes que uma nova regulação for aprovada, por mais positiva que aparente ser, faça a si mesmo esta pergunta: quem são os batistas e quem são os contrabandistas?
E aí você descobrirá facilmente por que a regulamentação foi aprovada.
28 de fevereiro de 2018
Mises Brasil
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