"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

domingo, 7 de janeiro de 2018

GRANDE JORNALISTA E ESCRITOR, CARLOS HEITOR, MORRE AOS 91 ANOS NO RIO DE JANEIRO

O jornalista e romancistsa Carlos Heitor Cony na sala de sua casa na Lagoa, zona sul do Rio, em 2016
Cony não foi de esquerda ou direita, era apenas livre
O romancista, escritor, jornalista e colunista da Folha, Carlos Heitor Cony morreu por volta das 23h desta sexta-feira (5) aos 91 anos, no Rio de Janeiro. Ele estava internado no Hospital Samaritano e morreu em decorrência de falência de múltiplos órgãos. A informação foi confirmada pela ABL (Academia Brasileira de Letras), da qual ele era membro desde 2000.
O Carlos Heitor Cony que conhecemos – cronista agudo e lírico, romancista prolífico de texto ágil e conciso – forjou-se de uma problema vocal e de uma clausura. Por problemas de formação pronunciava ditongos com dificuldade e trocava letras ao falar (o “g” pelo “d”, por exemplo). Se o menino que não falava direito,  podia escrever corretamente e ter, na escrita, uma forma de defesa e de manifestação da qual ninguém podia caçoar.
MUDO E SEMINARISTA – Nascido em 14 de março de 1926, em Lins de Vasconcelos, zona norte do Rio de Janeiro, Cony fora considerado “mudo” pela família até os quatro anos de idade. Só emitira o primeiro som ao levar um susto na praia de Icaraí (Niterói) ante o surgimento de um hidroavião vermelho vindo do mar em direção à areia. Em 1941, quando já estava com 15 anos, uma cirurgia poria fim ao problema.
Já a clausura – segundo pilar do Cony que conhecemos – foram os anos passados no Seminário Arquidiocesano de São José, no Rio Comprido, de 1938 a 1945, período em que estudou os clássicos gregos e romanos, praticou diversas línguas, conheceu música lírica e, principalmente, trocou muitas idéias, em especial consigo mesmo.
Do seminário, onde ingressara por vontade própria e de onde saiu aos 19 anos, meses antes de obter a tonsura, Cony herdou grande capacidade de concentração e o hábito de sempre se ocupar com alguma coisa, o tempo inteiro, além do gosto pela liturgia. Mas conheceu, também, o valor da dúvida, a experiência dolorida da ruptura e o alto custo a pagar pela livre expressão de pensamento e opinião.
Em “Informação ao Crucificado” (ficção com tonalidade autobiográfica em forma de diário publicada em 1961), o jovem seminarista João Falcão relata o tenso e decisivo diálogo no qual, acuado, respondendo a uma pergunta do Senhor Arcebispo (“por que você quis ser padre?”), explicava: “Porque achei bonito ser padre. Bonito e difícil”. Pouco a ver com “levar almas a Deus” ou com apego religioso, portanto. Réplica do Arcebispo: “…ou você muda radicalmente sua maneira de pensar, ou faça-me o extraordinário favor de abandonar o quanto antes o Seminário”.
INDIVIDUALISTA – Ao longo dessa experiência, solidificou-se uma personalidade marcada pelo ceticismo, alérgica a grupos, assumidamente individualista e, por isso mesmo, também errática, imprevisível. Em maio de 2000, no discurso de posse da cadeira número 3 da Academia Brasileira de Letras, Cony definiu-se, citando Eça de Queiroz, como um “anarquista entristecido, humilde e inofensivo”. “Não tenho disciplina suficiente para ser de esquerda, não tenho firmeza suficiente para ser de direita e não tenho a imobilidade oportunista do centro”.
Filho de Julieta de Moraes e do jornalista Ernesto Cony Filho – morto em 1985 aos 91 anos e celebrizado em 1995 como protagonista de “Quase Memória” –, Cony ingressa oficialmente no jornalismo aos 26 anos, em 1952, como redator na Rádio Jornal do Brasil. Antes tivera passagens como “setorista” da Gazeta de Notícias na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, em substituição ao pai. Foi também no lugar do pai – vítima de uma isquemia cerebral – que Cony passou a ser credenciado pelo “Jornal do Brasil”, em 1955, na Sala de Imprensa da Prefeitura da cidade.
O ESCRITOR – Em 1956, o autor o inscreve o primeiro romance (“O Ventre”) sob pseudônimo para o Prêmio Manuel Antonio de Almeida, concurso da Prefeitura. A comissão julgadora considera o livro “muito bom”, mas nega-lhe o prêmio por achá-lo forte demais para um certame oficial. Em apenas nove dias, para cumprir o prazo de inscrição, o autor produz seu segundo romance, “A Verdade de Cada Dia”, e com ele vence o concurso, em 1957. Com “Tijolo de Segurança”, recebe o mesmo prêmio, em 1958.
Os três romances viriam a ser publicados respectivamente em 1958, 1959 e 1960 pela Civilização Brasileira, dirigida por Ênio Silveira, que “adota” Cony como autor de ponta da prestigiosa editora. Seguem-se “Informação ao Crucificado” (1961), “Matéria de Memória” (1962) e “Antes, o Verão” (1964).
Ao comentar “A Verdade de Cada Dia” em 1961, o crítico Paulo Rónai classificava os romances de Cony como “chocantes e pungentes”, com um “lugar definitivo na história da ficção brasileira”. Na “História Concisa da Literatura Brasileira”, Alfredo Bosi via a obra do autor como uma “experiência cortante de neo-realismo psicológico”.
SUPERPRODUÇÃO – Não só produziu 17 romances, como enveredaria incansavelmente pela crônica e outros vários gêneros: romance-reportagem, biografias, ficção infanto-juvenil, adaptações de clássicos nacionais e estrangeiros. No total, sua produção reúne 65 publicações, sem falar naquelas realizadas em parceria ou a participação em coletâneas.
Certamente não tinha preocupação de fazer obras-primas. Escrevia, simplesmente, de modo compulsivo, como extensão, no papel, de sua fisiologia. Muitas vezes se classificou como um autor “sem estilo” – embora, segundo diferentes críticos, isso esteja longe da realidade. Sempre auto-irônico, disse numa entrevista: “Acho que já poluí demais o mercado editorial. O Ibama deveria tomar uma providência contra mim”.
O JORNALISTA – Se o reconhecimento literário veio cedo, expresso em prêmios e resenhas elogiosas, foi como cronista – cuja estreia se deu em 1962 no “Correio da Manhã” (onde fora contratado em 1960 como copidesque e depois editorialista) – que Cony surgiu para uma faixa mais ampla de leitores. A coluna, em revezamento com o escritor Otávio de Faria (1908-1980), chamava-se “Da arte de falar mal”.
A explosão pública de Cony, porém, ocorreria no ano seguinte, logo após a implantação da ditadura militar, em 1964. E não por acaso. Avesso a grupos, sem laços partidários nem compromissos programáticos, o cronista pôde se dar o luxo de, a partir de abril daquele ano, agir por instinto, atirar sozinho, expor-se como e quando achasse melhor em reação à implantação do regime militar.
As crônicas dos dias e semanas imediatamente posteriores ao Golpe são de uma ousadia sem igual em toda a imprensa. Cony dava nome aos bois. Chamava o golpe de “quartelada”, ironizava a presença político-militar dos Estados Unidos no país, investia contra os altos comandantes do novo regime. O impacto de seus textos era proporcional ao pasmo que tomara conta da maior parte dos setores atingidos pelo golpe, ainda mais por serem provenientes de um autor antes freqüentemente tachado de “alienado” e individualista -rótulos que ele próprio, diga-se, nunca rejeitou.
SEM ATIVISMO – Aquilo que socialmente aparecia como protesto politizado, engajamento determinado e firme, tinha para o autor, porém, um sentido diferente, particular: mais dever de consciência do que atitude programática. Cony explicou certa vez: “(…) não tive motivação política alguma para escrever como escrevia (…) não estava em jogo o fato político: estava em jogo, em grande parte, um lado humano. Pessoas que trabalhavam comigo desapareciam, eram espancadas nas ruas, eram torturadas… Foi um espetáculo deprimente, abominável (…) Isso tudo me enojou de uma tal maneira que eu comecei a escrever sobre o assunto. E com uma violência toda pessoal”.
A ousadia valeu-lhe fama e simpatia, mas custou-lhe, também, inúmeros transtornos. As filhas foram ameaçadas por militares, que rondavam o prédio onde Cony morava, no Posto 6, em Copacabana. O então ministro da Guerra, general Costa e Silva, moveu ação com base da Lei de Segurança Nacional, considerando as crônicas ofensivas às Forças Armadas. Mais tarde, a defesa do jornalista conseguiu que o processo ocorresse sob a Lei de Imprensa (em que as penas eram menores). Cony foi condenado a três meses de prisão, com direito a sursis.
DOZE PROCESSOS – De 1964 a 1972, sofreria 12 processos, sendo detido em seis oportunidades; na mais grave delas, ao final de 1968, com a decretação do Ato Institucional N° 5, chegou a ficar quase um mês na prisão. Em 1965, sob pressão, o escritor deixa o “Correio da Manhã” e começa a trabalhar nas Edições de Ouro (Ediouro) – fazendo adaptações de clássicos, traduções e prefácios–, além de colaborar com diferentes publicações. Chega a escrever uma telenovela (“Comédia Carioca”) para a TV Record, censurada.
No começo de 1966, sai o romance “Balé Branco”, dedicado a Carlos Drummond de Andrade, Austregésilo de Athayde, Alceu Amoroso Lima e Fernando de Azevedo, os quais haviam deposto em favor de Cony na Justiça durante o processo que sofrera pela ação de Costa e Silva. Nesse período publicaria, entre outros livros, uma coletânea de contos (“Sobre Todas as Coisas”, 1968) e produziria, para a Bloch Editores, reportagens que mais tarde redundaram no livro “Quem Matou Vargas?” (1972).
A TRAVESSIA – A Civilização Brasileira edita em 1967 o mais polêmico dos romances do autor: “Pessach: a Travessia”, obra que tematiza o drama vivido por boa parte da esquerda e da intelectualidade em relação ao engajamento ou não na luta armada contra a ditadura. Embora com uma orelha assinada pelo filósofo Leandro Konder, um dos responsáveis então pela política cultural do Partido Comunista Brasileiro (PCB), o livro é explicitamente crítico quanto ao papel desempenhado por essa organização no enfrentamento ao regime.
Primeira ficção com fundo político de Cony, “Pessach” causou debate até mesmo na sua reedição, em 1997, oportunidade em que o autor afirmou ter sido boicotado à época pelos jornalistas e intelectuais ligados ao PCB na difusão do livro – denúncia contestada por dirigentes comunistas daquele período como Ferreira Gullar e o próprio Konder.
Em circunstâncias políticas e pessoais desconfortáveis, Cony viaja ao exterior, passando por Paris, Moscou, Praga e Havana. Na capital cubana – inicialmente como jurado do concurso Casa de Las Américas –, permanece durante onze meses, entre 1967 e 1968.
NA MANCHETE – Sem perspectiva profissional, na volta ao Brasil Cony aceita o convite de Adolpho Bloch para trabalhar no seu grupo editorial –cujo apoio aos governos militares era explícito –, onde permaneceria por cerca de 30 anos. No dizer do próprio jornalista, foi uma opção por ajustar-se a uma espécie de “prisão de luxo”, com bons salários e viagens constantes ao exterior.
Para a esquerda, ao integrar o grupo de Bloch Cony fizera uma espécie de pacto com o diabo. Para a geração mais nova, que começava a entender alguma coisa apenas em meados dos anos 70, seu nome já se associava, ainda que indiretamente, à zona de influência do regime – o mesmo que ele combatera anos antes de modo tão escancarado e impetuoso.
Mas o “lobo solitário de feroz individualismo” (expressão de Ênio Silveira) não estava nem um pouco incomodado com tudo isso. Arredio, reagiu de maneira bem própria, bem “conyniana”, escrevendo o romance “Pilatos” (1974). Trata-se de um livro cáustico, com traços escatológicos e pornográficos.
Nesse período, segundo contava, vivia feliz, um “clone às avessas do seminário”. Sentia-se bem casado, passou a andar com rabo-de-cavalo, vestia calça vermelha, pintava quadros, viajava. Teve um filho e uma neta. Assessorava Bloch em assuntos pessoais e profissionais. Publicou livros-reportagem e pequenas obras infanto-juvenis. No final da década de 1980, chegou a assumir o departamento de teledramaturgia da TV Manchete e a esboçar sinopses de novelas como “Kananga do Japão” e “Dona Beja”.
COLUNISTA DA FOLHA – Em março de 1993, por sugestão do colunista Janio de Freitas, ele volta a ficar sob os holofotes da mídia, assumindo a coluna “Rio de Janeiro” da página A2 da Folha, antes assinada por Otto Lara Resende. Seu público mais antigo retoma o contato diário com uma verve ímpar, independente, carregada de anedotas curiosas e vastas experiências, sem ser, no entanto, saudosista. Para os leitores mais jovens, surge uma prosa cuja contundência, vivacidade e agilidade nem de longe denunciam tratar-se, na verdade, de um retorno.
Embora agnóstico, mantinha em casa uma pequena imagem de Santo Antônio. Nos últimos anos, especialmente a partir de um problema grave de saúde sofrido em 1991 que o levou à UTI de um hospital e a sofrer uma anestesia de nove horas de duração, tornou pública uma revisão interna a respeito do tema (religiosidade). Em depoimentos, manifestou apego a santos (José e Maria, além de Antônio) e uma aproximação com a idéia da existência de Deus.
Tal movimento deveria se expressar, ou melhor, deveria burilar sua própria definição na escritura do romance “Messa pro Papa Marcello”, um projeto de décadas, sintomaticamente inacabado. Nele, o ex-seminarista em crise João Falcão, de “Informação ao Crucificado”, ressurgiria muitos anos depois, buscando resolver seu “drama” religioso, o mistério íntimo que Cony – homem que sempre escreveu com rapidez e facilidade – aparentemente nunca logrou solucionar.
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NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG
 – E lá se vai mais um amigo, com quem trabalhei e me relacionei anos a fio, na Manchete. Aliás, lá se vão dois, porque Pedro Porfírio também pediu as contas e foi junto. Os dois foram presos na ditadura, mas com uma diferença enorme. Cony já era famoso, ficou na cela com Joel Silveira, não tocaram neles. Porfírio era desconhecido, foi torturado barbaramente. Cony poderia ser personagem de Nélson Rodrigues. O ex-seminarista perdeu a virgindade no casamento, junto com a noiva, e gostou tanto de fazer sexo que nunca mais parou de ter duas ou mais mulheres ao mesmo tempo. Só sossegou quando já estava coroa e não tinha mais condições de disputar mercado, digamos assim. Quanto ao nosso outro amigo Joel Silveira, com quem também trabalhei por anos a fio, ele adorava um uísque e não dormia antes de passar na embaixada da Escócia. Sua fama de ‘connoisseur” era tamanha que o contrabandista Leonardo, responsável por abastecer os jornalistas, se apresentava assim: “Sou eu que vendo os uísques do Joel Silveira”. E todo mundo comprava, por saber que os produtos não eram falsificados. Bons tempos, a gente era feliz e não sabia(C.N.)


07 de janeiro de 2018
Bernardo Ajzenberg
Folha

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