Quando ouvia falar na “garota de Ipanema”, Marília Kranz achava graça. Nos anos 50, ela fora pioneira do umbigo explícito no Arpoador, antecipara Leila Diniz em muitos anos ao ir à praia grávida e de biquíni e, antes de todas as amigas, já dizia que tinha “comido” um homem, não “dado” para ele. Uma de suas frases apareceu nos obituários que se escreveram a seu respeito, quando ela nos deixou no dia 20 último, aos 80 anos: “Nunca dei para um homem. Eles é que deram para mim”.
Ousadias parecidas já vinham de suas próprias avós, mãe e tias, na década de 30, em Ipanema. Todas trabalhavam (algumas como advogadas), ganhavam mais do que os maridos, fumavam em público, andavam de short pelas ruas, sabiam línguas e liam Freud. Marília era artista plástica e sua turma era a dos cartunistas, cronistas, designers e fotógrafos da cidade.
Casou-se aos 20 anos, em 1957, com um empresário americano, deixou a pintura e teve três filhas lindas. Foi dondoca por uns tempos e, se não se cuidasse, teria sido feliz para sempre. Mas, um dia, Marília deu um jeito: separou-se, voltou aos pincéis e instalou seu ateliê num cortiço em Botafogo —cortiço, mesmo. Nos piores tempos da ditadura, emprestou-o a seus amigos da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) e deixou que usassem seu fusca num sequestro de embaixador. Isso lhe rendeu prisão na Base Aérea do Galeão e risco de vida, mas ela foi em frente.
Numa data cívica de 1992, quando Fernando Collor, em seus estertores na Presidência, conclamou o povo a ir às ruas de verde-amarelo para apoiá-lo, Marília, com Eliane Caruso, conseguiu com que o povo do Rio saísse de preto. Fim de Collor.
Incrível que, com sua força de artista e mulher, Marília sucumbisse diante de um inimigo quase imperceptível —o mosquito transmissor da febre chikungunya.
31 de dezembro de 2017
Ruy Castro
Folha
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