Corremos o risco de um 'futuro adiado' se não nos erguermos à altura dos desafios do presente
Este é o primeiro de uma série de três artigos sobre três processos de mudanças de longo prazo que marcaram nossa experiência ao longo de décadas passadas e continuarão a marcar décadas vindouras. Muito além dos debates de 2017-2018 e dos próximos mandatos presidenciais de 2019-2022 e 2023-2026.
As três mudanças de longo prazo estão na raiz da pressão estrutural por maiores gastos públicos no Brasil. Uma pressão que acabou por tornar imperativa a emenda constitucional sobre limites à expansão continuada desses gastos e da reforma da Previdência, ora no Congresso, sem a qual, entre outras, o Brasil não terá condições de retomar o crescimento sustentado com inflação sob controle e maior justiça social.
O primeiro processo, como pano de fundo, é o elo crucial entre mudanças demográficas e urbanização: o Brasil é hoje a terceira maior democracia de massas urbanas do mundo. O Brasil será um “case” (estudo de caso) de relevância e interesse global, dada a sua extraordinariamente rápida transição nessa área.
O segundo processo diz respeito às nossas flagrantes necessidades e carências de infraestrutura “física” (transporte, energia, portos, saneamento) e à força histórica do apelo ao “desenvolvimento nacional”, tido por muitos como “intensivo em Estado”.
O terceiro processo de mudança de longo prazo está ligado às nossas não menos flagrantes necessidades e carências de “infraestrutura humana” (educação, saúde, segurança) e às legitimas pressões por menor desigualdade na distribuição de renda e de oportunidades.
Esses três processos de mudança exigem respostas de sucessivos governos – democráticos (como no Brasil de 1946-1964 e de 1985 ao presente) ou centralizadores e autoritários (como em 1937-1945 e 1964-1985). Todos, sem exceção, tentando responder aos desafios postos por essas mudanças nas circunstâncias e restrições sob as quais operam.
Regimes democráticos permitem uma ampla gama de expressões dessas demandas. Mas nas suas respostas a elas estão sujeitos a ritos do Parlamento e a decisões judiciais, enquanto regimes centralizadores/autoritários podem restringir a expressão dessas demandas, por um lado, e, por outro, ser mais seletivos no atendimento daquelas a que decidem responder – ou ignorar. O restante deste artigo trata da extraordinária singularidade brasileira no quesito demografia/urbanização.
O Brasil é o quinto maior país do mundo em termos de população (e extensão territorial) e o quarto maior país em termos de população urbana. É o terceiro em termos do aumento, em números absolutos, da população urbana entre 1950 e o presente, superando o aumento equivalente dos EUA no período. Enquanto nossa população total aumentou cerca de quatro vezes entre 1950 e 2017 (de 51,9 milhões para 207,6 milhões estimados), a nossa população urbana passou de 36% do total em 1950, para cerca de 86% em 2017 (isto é, de 18,7 milhões para 178 milhões, um aumento de 9,5 vezes). Nem nos EUA o aumento absoluto da população urbana no período chegou aos nossos 160 milhões (178-18) no período. Nem as populações urbanas da China e da Índia no período se multiplicaram 9,5 vezes. Somos hoje a terceira maior democracia de massas urbanas do mundo, após Índia e EUA.
Mais importantes são a rapidez vertiginosa com que cresceu a nossa população (total e urbana) desde o pós-guerra e a velocidade não menos vertiginosa com que nossas taxas de crescimento populacional vieram declinando no curto espaço de pouco mais que uma geração, desde os anos 90. De taxas de crescimento que chegaram a superar os 3% ao ano nos anos 50 e 60 (média de 2,8% ao ano entre 1950 e 1980) passamos hoje, em 2017, a uma taxa de crescimento populacional da ordem de 0,77% e declinará para menos de 0,4% na segunda metade da próxima década.
Nossa população total, hoje de 207,6 milhões, chegará aos 218 milhões por volta de 2025, alcançará seu ponto máximo de pouco mais de 228 milhões no início dos anos 2040 e começará a declinar, voltando aos 218 milhões em 2060. A partir de 2050 só a faixa etária dos 60 anos de idade ou mais estará crescendo.
A expectativa de vida ao nascer de um brasileiro em meados na década dos 1940 era da ordem de 45 anos. Hoje a expectativa de vida ao nascer é de mais de 75 anos (79 para mulheres e 72 para homens). Mas para quem chega aos 55 anos (próximo da idade média de quem se aposenta por tempo de contribuição) a expectativa de vida é de 81 anos, ou seja, 26 anos mais. Para quem chega aos 65 anos, a expectativa é de 82 anos para homens e 85 para mulheres.
Os idosos representam hoje 12 dentre cada 100 trabalhadores. Em meados da próxima década devemos chegar a 18 para cada 100. Em 2050 chegaremos a 30%. Em 2060, dado que só a faixa etária dos 60 anos ou mais estará crescendo, e todas as outras diminuindo, os idosos representarão cerca de 45% do total. Parece longe? Infelizmente, não.
Sem mudanças como as contempladas na PEC ora em discussão, os benefícios previdenciários e os déficits da área cresceriam, aceleradamente, nos próximos dez anos, reduzindo a participação de outras áreas no Orçamento, incluídos os gastos com educação, segurança e serviços na área de saúde, exatamente quando estarão aumentando as demandas derivadas do crescimento rápido da população relativa de idosos no conjunto da população.
É muito real o risco de ficarmos “velhos” muito antes de ficarmos “ricos”, por exemplo: chegar, pelo menos, ao nível de renda per capita de países do sul da Europa, que têm de 50% a 66% da renda per capita dos EUA (o Brasil tem hoje pouco menos de 30%, na mesma base de comparação). Corremos o risco de um “futuro adiado” – mais uma vez –, e por vários anos, se não nos erguermos à altura dos conhecidos e nada triviais desafios do presente. Como estamos tentando – forçados por uma crise, que veio sendo contratada muitos anos antes de 2014.
*Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC
30 de abril de 20178
Pedro Malan, Estadão
Este é o primeiro de uma série de três artigos sobre três processos de mudanças de longo prazo que marcaram nossa experiência ao longo de décadas passadas e continuarão a marcar décadas vindouras. Muito além dos debates de 2017-2018 e dos próximos mandatos presidenciais de 2019-2022 e 2023-2026.
As três mudanças de longo prazo estão na raiz da pressão estrutural por maiores gastos públicos no Brasil. Uma pressão que acabou por tornar imperativa a emenda constitucional sobre limites à expansão continuada desses gastos e da reforma da Previdência, ora no Congresso, sem a qual, entre outras, o Brasil não terá condições de retomar o crescimento sustentado com inflação sob controle e maior justiça social.
O primeiro processo, como pano de fundo, é o elo crucial entre mudanças demográficas e urbanização: o Brasil é hoje a terceira maior democracia de massas urbanas do mundo. O Brasil será um “case” (estudo de caso) de relevância e interesse global, dada a sua extraordinariamente rápida transição nessa área.
O segundo processo diz respeito às nossas flagrantes necessidades e carências de infraestrutura “física” (transporte, energia, portos, saneamento) e à força histórica do apelo ao “desenvolvimento nacional”, tido por muitos como “intensivo em Estado”.
O terceiro processo de mudança de longo prazo está ligado às nossas não menos flagrantes necessidades e carências de “infraestrutura humana” (educação, saúde, segurança) e às legitimas pressões por menor desigualdade na distribuição de renda e de oportunidades.
Esses três processos de mudança exigem respostas de sucessivos governos – democráticos (como no Brasil de 1946-1964 e de 1985 ao presente) ou centralizadores e autoritários (como em 1937-1945 e 1964-1985). Todos, sem exceção, tentando responder aos desafios postos por essas mudanças nas circunstâncias e restrições sob as quais operam.
Regimes democráticos permitem uma ampla gama de expressões dessas demandas. Mas nas suas respostas a elas estão sujeitos a ritos do Parlamento e a decisões judiciais, enquanto regimes centralizadores/autoritários podem restringir a expressão dessas demandas, por um lado, e, por outro, ser mais seletivos no atendimento daquelas a que decidem responder – ou ignorar. O restante deste artigo trata da extraordinária singularidade brasileira no quesito demografia/urbanização.
O Brasil é o quinto maior país do mundo em termos de população (e extensão territorial) e o quarto maior país em termos de população urbana. É o terceiro em termos do aumento, em números absolutos, da população urbana entre 1950 e o presente, superando o aumento equivalente dos EUA no período. Enquanto nossa população total aumentou cerca de quatro vezes entre 1950 e 2017 (de 51,9 milhões para 207,6 milhões estimados), a nossa população urbana passou de 36% do total em 1950, para cerca de 86% em 2017 (isto é, de 18,7 milhões para 178 milhões, um aumento de 9,5 vezes). Nem nos EUA o aumento absoluto da população urbana no período chegou aos nossos 160 milhões (178-18) no período. Nem as populações urbanas da China e da Índia no período se multiplicaram 9,5 vezes. Somos hoje a terceira maior democracia de massas urbanas do mundo, após Índia e EUA.
Mais importantes são a rapidez vertiginosa com que cresceu a nossa população (total e urbana) desde o pós-guerra e a velocidade não menos vertiginosa com que nossas taxas de crescimento populacional vieram declinando no curto espaço de pouco mais que uma geração, desde os anos 90. De taxas de crescimento que chegaram a superar os 3% ao ano nos anos 50 e 60 (média de 2,8% ao ano entre 1950 e 1980) passamos hoje, em 2017, a uma taxa de crescimento populacional da ordem de 0,77% e declinará para menos de 0,4% na segunda metade da próxima década.
Nossa população total, hoje de 207,6 milhões, chegará aos 218 milhões por volta de 2025, alcançará seu ponto máximo de pouco mais de 228 milhões no início dos anos 2040 e começará a declinar, voltando aos 218 milhões em 2060. A partir de 2050 só a faixa etária dos 60 anos de idade ou mais estará crescendo.
A expectativa de vida ao nascer de um brasileiro em meados na década dos 1940 era da ordem de 45 anos. Hoje a expectativa de vida ao nascer é de mais de 75 anos (79 para mulheres e 72 para homens). Mas para quem chega aos 55 anos (próximo da idade média de quem se aposenta por tempo de contribuição) a expectativa de vida é de 81 anos, ou seja, 26 anos mais. Para quem chega aos 65 anos, a expectativa é de 82 anos para homens e 85 para mulheres.
Os idosos representam hoje 12 dentre cada 100 trabalhadores. Em meados da próxima década devemos chegar a 18 para cada 100. Em 2050 chegaremos a 30%. Em 2060, dado que só a faixa etária dos 60 anos ou mais estará crescendo, e todas as outras diminuindo, os idosos representarão cerca de 45% do total. Parece longe? Infelizmente, não.
Sem mudanças como as contempladas na PEC ora em discussão, os benefícios previdenciários e os déficits da área cresceriam, aceleradamente, nos próximos dez anos, reduzindo a participação de outras áreas no Orçamento, incluídos os gastos com educação, segurança e serviços na área de saúde, exatamente quando estarão aumentando as demandas derivadas do crescimento rápido da população relativa de idosos no conjunto da população.
É muito real o risco de ficarmos “velhos” muito antes de ficarmos “ricos”, por exemplo: chegar, pelo menos, ao nível de renda per capita de países do sul da Europa, que têm de 50% a 66% da renda per capita dos EUA (o Brasil tem hoje pouco menos de 30%, na mesma base de comparação). Corremos o risco de um “futuro adiado” – mais uma vez –, e por vários anos, se não nos erguermos à altura dos conhecidos e nada triviais desafios do presente. Como estamos tentando – forçados por uma crise, que veio sendo contratada muitos anos antes de 2014.
*Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC
30 de abril de 20178
Pedro Malan, Estadão
Nenhum comentário:
Postar um comentário