"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

domingo, 5 de fevereiro de 2017

ENTENDA POR QUE OS MOVIMENTOS ISLÂMICOS SÃO REACIONÁRIOS E IMPERIALISTAS


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Não há ‘progressistas’ nos movimentos radiciais islâmicos
O site “Insurgência”, mantido por uma das mais importantes alas do PSol, publicou uma longa entrevista com o professor britânico Gilbert Achcar, feita pela repórter Ashley Smith para a “IS Review”. Autor de diversas obras sobre política internacional, Gilbert Achcar é professor da Escola de Estudos Orientais e Africanos (School of Oriental and African Studies) da Universidade de Londres. Na entrevista, o cientista política analisa a Primavera Árabe e os principais movimentos radicais islâmicos. Para facilitar a leitura, fizemos um resumo das importantes colocações da entrevista.
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DA IRMANDADE ATÉ O ESTADO ISLÂMICO
Gilbert Achcar
O fundamentalismo islâmico, na forma de um movimento organizado da era moderna, nasceu no final da década de 1920 com a criação da Irmandade Muçulmana no Egito. Esta foi, consequentemente, a primeira organização política moderna que se dotou de um programa fundamentalista islâmico. E também foi por essa época que a teorização do Estado Islâmico, a doutrina do fundamentalismo islâmico, adquiriu sua forma moderna, igualmente no Egito. Por outro lado, é claro que houve correntes fundamentalistas anteriores, assim como diversos tipos de seitas puritanas na história do Islã, como em outras religiões monoteístas, mas os partidários da Irmandade Muçulmana foram os pioneiros de uma corrente do fundamentalismo islâmico adaptado à sociedade contemporânea, na forma de movimento político.
Esta corrente surgiu à raiz de uma série de acontecimentos. Os primeiros foram a proclamação da república [em 29 de outubro de 1923] e a abolição do califado [em 03 de março de 1924] na Turquia, que aconteceram poucos anos depois do fim da 1ª Guerra Mundial. Sendo que a instauração, por Mustafa Kemal, de uma república laica na Turquia foi um golpe moral para aqueles que rechaçavam a separação entre o Islã e o Estado. Isto ocorreu ao mesmo tempo que a fundação do reino saudita na península arábica, um Estado baseado em uma premissa fundamentalista islâmica, ainda que de caráter arcaico-tribal.
O EGITO AMADURECIA – Em segundo lugar, o Egito era um país em que estava amadurecendo uma situação revolucionária, devido à acumulação de uma série de problemas explosivos: problemas sociais, uma pobreza terrível no campo, uma monarquia corrupta, dirigentes desprezados ou odiados pelo povo e a dominação colonial britânica. No entanto, a esquerda egípcia era fraca e o movimento operário havia sucumbido diante da repressão na década de 1920. De modo que havia uma conjunção de fatores que favoreceram o surgimento do fundamentalismo islâmico como movimento político que capitalizou o descontentamento popular.
Desde o ponto de vista do materialismo histórico, o fundamentalismo islâmico é uma assombrosa ilustração do que Marx e Engels identificaram, em seu Manifesto Comunista, como uma das orientações ideológicas das classes médias tradicionais. Um setor da pequena burguesia tradicional, os artesãos e o campesinato médio e pequeno, sofreram os efeitos devastadores do capitalismo que se desenvolveu à custa destes setores, forçando-os a passar de sua condição de pequenos produtores ou comerciantes à condição de trabalhadores assalariados obrigados a vender sua força de trabalho para ganhar o sustento.
REACIONARISMO – Um setor dessas classes minimamente abastadas se opõe no Egito ao desenvolvimento capitalista, pretendendo “fazer girar para trás a roda da história”, segundo a famosa expressão de Marx e Engels – uma formulação excelente, correta, que destaca o caráter reacionário destes setores. E que se encaixa perfeitamente no caso do fundamentalismo islâmico, no sentido de que esta corrente nasce de uma revolta contra as consequências do desenvolvimento capitalista (impulsionado pela dominação estrangeira), mas a partir de uma perspectiva reacionária que pretende retornar a uma mítica idade de ouro islâmica que existiu há três séculos.
É exatamente isto que têm em comum todos os grupos fundamentalistas islâmicos, desde a Irmandade Muçulmana como movimento de massas, ao menos em sua versão original egípcia, até os grupos terroristas, dentre eles o mais extremista, que é o terrível Estado Islâmico (EI). Todos eles defendem o desejo de reinstaurar, de alguma maneira, a forma de governo e as normas sociais que existiam na época antiga do Islã. No caso do EI, seus partidários acreditam que já estão fazendo isso através de seu chamado Estado Islâmico.
IMPERIALISMO – Que relação guarda o fundamentalismo islâmico com o imperialismo? O fundamentalismo islâmico opõe-se ao imperialismo ou encontra-se em contato com ele, conspirando com ele?
Ambas as coisas, diria eu, e isto não é contraditório. A tropa do fundamentalismo islâmico está formada por pessoas que reagiram diante das consequências do capitalismo, da dominação imperialista e das guerras imperialistas. Porém, respondem a estas de um modo reacionário. Frente ao capitalismo e ao imperialismo poderiam optar por empreender uma luta progressista, com o objetivo de substituir o capitalismo selvagem por uma sociedade igualitária socialmente justa, ou acreditar que a solução passa por restaurar uma forma de governo completamente anacrônica nos tempos atuais, abraçando, portanto, uma perspectiva muito reacionária.
E pelo fato de ser uma resposta reacionária aos problemas que temos mencionado, acaba sendo utilizada historicamente por todo o conjunto de forças reacionárias, incluindo o próprio imperialismo. Desde que fundaram o seu movimento, os partidários da Irmandade Muçulmana têm estabelecido um vínculo estreito com aquele Estado, que era e segue sendo de longe, o mais reacionário, antidemocrático e misógino que há no mundo, ou seja, o reino da Arábia Saudita.
AFINIDADE – Este vínculo com os sauditas foi estabelecido em virtude da afinidade entre sua própria perspectiva e o que se costumou denominar de wahabismo, que seria a ideologia da força tribal que fundou o reino saudita.
A Irmandade Muçulmana colaborou estreitamente com o reino saudita desde sua criação até 1990. Isso quer dizer, até o momento em que o Iraque invadiu o Kuwait, provocando a primeira guerra dos Estados Unidos contra o Iraque. Até então, a Irmandade Muçulmana foi um grande aliado do reino saudita, bem como dos Estados Unidos, o patrão dos sauditas. Ambos a utilizaram na luta contra o nacionalismo de esquerda, em particular contra Gamal Abdel Nasser no Egito (no período entre 1952 até 1970), mas também contra o movimento comunista e a influência da União Soviética em países de maioria muçulmana. Esta aliança impudica entre os Estados Unidos, a Arábia Saudita e os movimentos fundamentalistas islâmicos era reacionária até a medula.
Os sauditas romperam com a Irmandade porque esta última não se juntou ao reino em seu apoio ao ataque dos Estados Unidos contra o Iraque em 1991. Isto se deve, por um lado, pelo fato de que resultava em algo muito difícil para a Irmandade Muçulmana, desde o ponto de vista ideológico, aprovar uma intervenção ocidental contra um país muçulmano, a partir do território que abrigava os lugares sagrados do Islã [no caso, a Arábia Saudita].
CONTRA A AGRESSÃO – Por outro lado, a Irmandade tinha que levar em conta o fato de que suas bases se opuseram firmemente àquela agressão, assim como a maior parte da opinião pública dos países árabes.
Assim, a maioria das seções regionais da Irmandade Muçulmana condenaram a escalada (envio de maior número de soldados e armas a uma guerra) e o ataque dos Estados Unidos, o que fez com que o reino saudita rompesse com a instituição. Após esse acontecimento, a Irmandade tentou buscar e acabou encontrando outro patrocinador que passou a financiá-la: o Emirado do Qatar, que desde então é seu principal patrocinador.
Então, depois de ter sido financiada, durante décadas, pelos sauditas, agora era financiada pelo Emirado do Qatar. E o Qatar, obviamente, é outro íntimo aliado dos Estados Unidos na região, um país que abriga quartéis avançados do Comando Central (militar) dos Estados Unidos e a plataforma mais importante das guerras aéreas dos Estados Unidos, desde o Afeganistão até a Síria.
APOIO AOS EUA – Quando a Irmandade Muçulmana exerceu o poder no Egito durante a presidência de seu membro Mohamed Morsi, ganhou elogios de Washington. Seu histórico é mais do que evidente. Outros ramos mais “radicais” do fundamentalismo islâmico também colaboraram no passado com os Estados Unidos.
A história da Al Qaeda é conhecida: originou-se ao somar-se à guerrilha para lutar contra a ocupação soviética do Afeganistão, apoiada pelos Estados Unidos, a Arábia Saudita e o Paquistão, antes de converter-se em feroz inimiga dos Estados Unidos e da família real saudita depois de 1990, por um motivo similar ao que provocou a ruptura da Irmandade Muçulmana com o reino.
Foi mudado o caráter de classe do fundamentalismo islâmico com esta mudança no que se refere ao seu financiador, patrocinador estatal? Ele continua sendo uma expressão da pequena burguesia ou ele tem se “aburguesado”?
Antes de qualquer coisa, o fundamentalismo islâmico não se limita a um único movimento. Constitui um amplo espectro de forças e grupos, como eu tinha assinalado, que vai desde a Irmandade Muçulmana até os grupos fanáticos totalitários como o Estado Islâmico (EI), passando pelos jihadistas. Inclusive, se nos concentrarmos em analisar a Irmandade Muçulmana, não podemos esquecer que se trata de uma organização regional e global cujas estratégias e táticas variam de um lugar para outro.
ABURGUESAMENTO – No entanto, se nos centramos exclusivamente no Egito, fica claro que foi produzido um “aburguesamento” da Irmandade egípcia. Quando Nasser os reprimiu, muitos de seus membros e dirigentes exilaram-se na Arábia Saudita, onde vários deles se converteram em homens de negócios e tiraram proveito do boom do petróleo da década de 1970. A relação com o Estado saudita e o capital do Golfo Pérsico desempenhou um papel importante no desenvolvimento, no Egito, de uma camada chamada pelos turcos, por exemplo, de “burguesia devota”, que se constitui em um setor que desempenha um papel cada vez mais importante no seio da Irmandade Muçulmana.
Enquanto que esta fração capitalista adquiriu uma importância notável no seio da Irmandade Muçulmana, a maior parte de suas bases, de sua tropa, continua sendo recrutada nas fileiras da pequena burguesia e das camadas mais pobres da sociedade. Isto não deveria estranhar a ninguém. Olha o caso de Donald Trump nos Estados Unidos. Ele é o porta-estandarte da política reacionária, mas seus seguidores não são, precisamente, acionistas da Microsoft. A direita capitalista, especialmente seus setores mais reacionários, sempre busca reunir uma massa de seguidores em outras classes, em particular entre os setores ressentidos das classes médias e do proletariado.
CONSERVADORISMO – Dito isto, a mudança de composição de classe da direção da Irmandade Muçulmana não tem alterado basicamente seu programa. Para começar, essa organização nunca foi anticapitalista. Ela apenas fala de uma forma muito geral de igualdade social, da mesma forma que os partidos mais conservadores. Sobre essa questão, exceto os grupos que aderiram abertamente ao cruel darwinismo social, até os partidos mais conservadores utilizam uma retórica compassiva. Recordemos o “conservadorismo compassivo” de George W. Bush. O mesmo ocorre com a Irmandade Muçulmana. Eles se utilizarão do discurso de que é preciso ocupar-se com os pobres, a fim de dizer que a caridade islâmica aliviará a pobreza, ou seja, para dizer que o Islã contribui para a solução desse problema. Tudo isto encaixa perfeitamente em uma perspectiva neoliberal que apoia a privatização da assistência social e sua delegação em sociedades de beneficência privadas.
Não é estranho, portanto, que a Irmandade Muçulmana após chegar ao poder na Tunísia e no Egito tenha mantido a mesma política econômica anterior. Terem também aprovado os ditames do Fundo Monetário Internacional (FMI), assim como terem feito o possível para satisfazer a classe capitalista, incluindo membros do próprio antigo regime. Os fundamentalistas islâmicos não se opuseram à ordem neoliberal, que afundou o Oriente Médio na miséria.

05 de fevereiro de 2017
Mário Assis Causanilha

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