“O brasileiro médio hoje procura desesperadamente um partido que reflita o que ele pensa do mundo”
Em 2014, passadas as eleições presidenciais, todos os analistas foram unânimes em afirmar que o país que saía das urnas estava profundamente dividido. Mapas que circulavam pelas redes sociais pretendiam provar que haveria uma divisão norte-sul, com o norte petista e o sul tucano (uma falácia, eis que o voto ideológico na esquerda, historicamente, sempre se deu nos grandes centros urbanos do sul-sudeste, como Grande São Paulo, Porto Alegre e Rio de Janeiro). A própria candidata vencedora, diante de uma economia empobrecida e a frente de um governo atolado até o pescoço em denúncias de corrupção, apostou tudo no racha do eleitorado, explorando à saciedade as diferenças de classe, cor da pele, gênero e sexualidade. Não à toa, ganhou, mas não levou: em fevereiro de 2015, já 44% da população dizia que o governo dela era ruim ou péssimo, índice que chegou a incríveis 66 % em agosto, batendo os recordes anteriores de impopularidade de Fernando Collor de Mello. No meio desses dois momentos o mês de março viu o maior protesto popular da história do país. Diante desses números, presumivelmente grande parte do seu próprio eleitorado não se sentia representado pela pessoa que tinha eleito, meses após encerrado o pleito.
A rejeição à política tradicional nos EUA deixa claro que esse não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. Pesquisas de maio deste ano apontavam ambos os candidatos com 57% de rejeição do eleitorado. 80% dos americanos não se sentiam “entusiasmados” com as campanhas de um ou outro candidato.
Em 2015, o Ibope já havia atestado que os partidos políticos eram a instituição menos confiável para a população, seguidos do Congresso Nacional, da Presidência da República e do “governo”. No topo da tabela, o brasileiro confia mais naquilo que ele próprio não elege – os bombeiros, as igrejas e as Forças Armadas.
Isso é resultado direto da forma como o nosso sistema eleitoral está montado: pra quem ainda acha que vivemos sob uma democracia representativa, na atual legislatura apenas 65 dos 513 deputados federais foram eleitos com votação própria: os outros 448 chegaram à câmara pelo “quociente eleitoral”. Celso Russomanno levou 4 junto com ele, Tiririca levou outros 2, e por aí vai. Também por esse critério, você é discriminado em função do local onde deposita seu voto: são precisos 350 mil eleitores em São Paulo pra fazer um deputado federal, ao passo que 40 mil eleitores do Acre já ganham o direito de eleger um representante na câmara de deputados. Num sistema de voto distrital puro, em que deputados e senadores disputam eleições majoritárias e não proporcionais, apenas o bairro do Grajaú, em São Paulo, elegeria o mesmo número de deputados que o Estado do Amapá. E Jean Wyllys nunca teria chegado ao Congresso.
À parte a desmoralização dos gestores da coisa pública pela corrupção generalizada, está aí explicado porque o eleitor confia mais no judiciário, que ele não elege, que no legislativo, que ele elege. Se 87% dos ocupantes do legislativo, em tese, não deveriam estar lá porque não obtiveram votos suficientes, é evidente que o eleitor não tem (nem quer ter) nada a ver com a história.
Diante do resultado das eleições municipais, não faltou quem, na esquerda, renegasse o status do PT como legítimo representante do campo progressista. O professor de sociologia da USP José de Souza Martins chocou o mundo ao noticiar: “O PT é um partido de direita, de tradição conservadora”.
Já Leonardo Sakamoto cravou, em 30 de outubro, que “não afirmaria que o país deu uma guinada para a direita, uma vez que nunca se conseguiu implementar por aqui um projeto social, econômico e político de esquerda.” E Dora Kramer, no Estadão, jogou a pá de cal naqueles que ainda tinham alguma ilusão de termos presenciado o fracasso de um governo de esquerda no Brasil: o PT “governou com e para a direita atrasada”, e “em momento algum o País teve a prevalência da corrente de esquerda”.
É inegável que o PSDB foi o depositário de grande parte dos votos conservadores no Brasil, tanto em 2016 quanto em 2014. Mas em 9 de novembro de 2014 Aécio Neves, então recém-derrotado, afirmou em entrevista ao Globo: “Para a direita não adianta me empurrar que eu não vou”. E que direita seria essa? A detentora de uma “agenda conservadora, antidemocrática, totalitária”, sempre nas palavras do herdeiro da família Neves.
E Fernando Henrique Cardoso, escrevendo de Paris, publicou em 6 de novembro último artigo no Estadão intitulado “Reflexões Amargas”, em que fala em “evitar a onda direitista e reacionária” e diz que o PSDB deve reafirmar o “social de seu nome e acompanhando as transformações dos valores e da cultura, opondo-se, portanto, às ondas reacionárias não só na Europa, mas também entre nós.” Não se duvida da seriedade do cacique tucano: em São Paulo o PSDB fez o possível para sabotar seu próprio candidato à prefeitura, que falava abertamente em privatizar e diminuir sensivelmente as atribuições do setor público. Um discurso muito diferente de seus principais nomes, como Alberto Goldman, José Serra, José Aníbal e Aloísio Nunes Ferreira, que passaram boa parte de suas juventudes militando por organizações de extrema esquerda. O discurso de Dória causou tamanha ojeriza no partido “neoliberal” que Andrea Matarazzo (aliás, primo de Eduardo Suplicy) resolveu até se desligar de seus quadros pra não correr risco de contaminação ideológica.
Ficamos então numa situação sui generis: o eleitor de esquerda rejeita os partidos que se dizem de esquerda, e os partidos que são chamados “de direita” (embora, justiça seja feita, nunca tenham se proclamado dessa forma) rejeitam o eleitor de direita. E o que se vê é que políticos que tradicionalmente tentam se associar a valores de um ou de outro campo, como Marcelo Freixo e Jair Bolsonaro, não tem densidade eleitoral para ocupar cargos majoritários, seja em nível local, seja em nível nacional.
A situação é (muito) mais grave para o eleitor conservador. Segunda pesquisa Datafolha de 2012, de 60% a 80% da população brasileira expressa visões de mundo conservadoras em assuntos relacionados a drogas, aborto, porte de armas e união de pessoas do mesmo sexo. Esse contingente está órfão: NENHUM partido político com representação no Congresso Nacional hoje se assume como “de direita”. O próprio Partido da Frente Liberal, que costumava carregar uma ou outra bandeira mais conservadora, mudou até de nome para se afastar do rótulo. O PSD de Gilberto Kassab, que aliás nasceu por ingerência do governo de Dilma Rousseff com o escopo de desidratar tanto o DEM (ex-PFL) quando o PMDB, lançou campanha nacional para comunicar que não seria “nem de esquerda, nem de direita”. O PSL, o único partido no Congresso que levanta a bandeira de menor participação estatal na economia (embora em outros temas suas posições sejam bastante dúbias), tem apenas um deputado federal eleito, e nenhum senador.
O brasileiro médio hoje procura desesperadamente um partido que reflita o que ele pensa do mundo.
13 de novembro de 2016
Rafael Rosset é advogado
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