A abordagem ficará distante de críticas ou elogios à denominada Operação Lava Jato. Tem ela méritos indiscutíveis, bem como é incontestável que conduziu a excessos que violaram direitos e garantias individuais. No entanto, a pretensão é pôr o foco sobre duas medidas legislativas em discussão no Congresso Nacional, que estão sendo indevidamente vinculadas ao destino dessa operação, mas, na verdade, pouco ou nada têm que ver com as ações futuras dela decorrentes.
Refiro-me a dois diplomas legislativos, ainda projetos: um, o que inclui em nosso ordenamento jurídico as chamadas dez medidas de combate à corrupção e o outro, o que modifica a atual lei de abuso de autoridade, datada de 1966.
A primeira observação sobre as medidas apregoadas como salvadoras e indispensáveis à continuidade da Lava Jato diz respeito ao ardor com que alguns procuradores as defendem, sempre por meio da utilização de argumentos que causam constrangimento àqueles que pensam ao contrário.
A não aprovação das dez medidas, segundo os seus defensores, representará o perecimento da Lava Jato e, para eles, os que as criticam estão se mostrando favoráveis à corrupção. O projeto que pune a autoridade que comete abuso, por sua vez, na opinião dos seus detratores, tem por escopo inibir e cercear os responsáveis pelo combate ao crime de colarinho-branco e quem o defende deseja a inação das autoridades e a impunidade.
Percebe-se que tais argumentos, eles, sim, provocam inibição e receio aos que “ousam” contestar, mesmo que em parte, a opinião dos membros do Ministério Público, em face dos argumentos verdadeiramente ad terrorem que são utilizados.
A posição adotada pelos defensores das dez medidas e contrários à lei do abuso de autoridade mostra-se repleta de emoção, diria até de paixão, e a paixão é incompatível com a elaboração das leis, que exige serenidade e isenção. Com plena procedência e ampla razão, editorial do jornal O Estado de S. Paulo de 29 de outubro do corrente ano (página A3) afirmou que “o debate da questão tanto no âmbito do Senado como nas instituições representativas das várias categorias de profissionais que atuam nas operações de investigação tende a assumir um caráter passional que não condiz com a objetividade e isenção que o tema exige.”
Com relação à Operação Lava Jato, é fato notório que ela alcançou centenas de situações e de pessoas; centenas de inquéritos e de ações penais foram instaurados; vários anos de prisão já foram impostos a numerosos réus; incontáveis buscas, prisões temporárias e preventivas, conduções coercitivas, quebras de sigilo bancário e fiscal, bloqueios de bens e outras medidas cautelares foram decretas sem que as dez salvadoras medidas existissem.
Por que o fundamento do perecimento da operação sem as dez medidas? Aliás, não se pode esquecer que as medidas serão, se aprovadas, incorporadas ao ordenamento jurídico e, obviamente, não se limitarão à Lava Jato, elas atingirão todas as situações jurídicas de natureza penal.
Um argumento igualmente enganoso atinge o projeto de lei do abuso de autoridade. Fala-se que, se transformado em lei, ele vai inibir a atuação das autoridades que combatem a corrupção. Surge, então, uma óbvia e consequente observação a esse argumento: será que até agora houve abuso nas ações contra os corruptos? Com a aprovação do projeto as futuras ações, sem os abusos, serão inócuas?
A resposta das autoridades será negativa. Não houve abusos e a Operação Lava Jato foi executada dentro da legalidade. Pois bem, assim sendo, isto é, não tendo havido excessos, por que temer uma lei que venha a criminalizar o abuso de autoridade? Os seus críticos deverão explicar melhor por que são contrários ao projeto. Quem não abusa não teme.
É estranho que até entidades representativas de magistrados estejam tomando posição contra o projeto de lei de abuso de autoridade. Em verdade, deveriam manifestar-se a favor da inserção no ordenamento jurídico de um instrumento de contenção dos excessos cometidos no exercício das atividades judiciais, acusatórias e policiais. Pois tais entidades têm, dentre o seus escopos, o de aprimorar o ordenamento jurídico.
Evidentemente, o projeto deverá ser debatido amplamente. De plano, devem ser criticados os dispositivos que criminalizam decisões de juízes e manifestações de promotores, com base em interpretações legais e em entendimentos doutrinários. Responsabilizar, como está no projeto, juízes que não concedam liberdade provisória, mesmo quando presentes os requisitos para tanto, ou promotores que ofereçam denúncias carentes de justa causa, como também está no projeto, é introduzir em nosso sistema penal o crime de hermenêutica.
Hipóteses como as acima citadas não invalidam o projeto, que, examinado, levará à conclusão de que não contém nenhuma restrição, nenhuma tentativa de inibição ao exercício das atividades investigativas, acusatórias e punitivas. Lembre-se que o projeto vai substituir a antiga lei de abuso de autoridade, promulgada em pleno regime militar, em 1966.
Leis impositivas de barreiras à ação punitiva estatal, em defesa das garantias e dos direitos individuais, existem em todos os países civilizados. E no Brasil o que se pretende é a adaptação da matéria aos tempos atuais.
O que se coíbe é o abuso, o exercício arbitrário dos poderes conferidos a cada um dos agentes do Estado responsáveis pelo sistema penal, desde a investigação até o julgamento, passando pela acusação.
Deve-se ter presente que as dez medidas não representam os dez mandamentos, como bem realçado pelo juiz Sergio Moro, assim como o projeto de lei do abuso de autoridade não representa um grilhão no pescoço das autoridades.
13 de novembro de 2016
Antônio Claudio Mariz de Oliveira é advogado criminal, da Advocacia Mariz de Oliveira.
Refiro-me a dois diplomas legislativos, ainda projetos: um, o que inclui em nosso ordenamento jurídico as chamadas dez medidas de combate à corrupção e o outro, o que modifica a atual lei de abuso de autoridade, datada de 1966.
A primeira observação sobre as medidas apregoadas como salvadoras e indispensáveis à continuidade da Lava Jato diz respeito ao ardor com que alguns procuradores as defendem, sempre por meio da utilização de argumentos que causam constrangimento àqueles que pensam ao contrário.
A não aprovação das dez medidas, segundo os seus defensores, representará o perecimento da Lava Jato e, para eles, os que as criticam estão se mostrando favoráveis à corrupção. O projeto que pune a autoridade que comete abuso, por sua vez, na opinião dos seus detratores, tem por escopo inibir e cercear os responsáveis pelo combate ao crime de colarinho-branco e quem o defende deseja a inação das autoridades e a impunidade.
Percebe-se que tais argumentos, eles, sim, provocam inibição e receio aos que “ousam” contestar, mesmo que em parte, a opinião dos membros do Ministério Público, em face dos argumentos verdadeiramente ad terrorem que são utilizados.
A posição adotada pelos defensores das dez medidas e contrários à lei do abuso de autoridade mostra-se repleta de emoção, diria até de paixão, e a paixão é incompatível com a elaboração das leis, que exige serenidade e isenção. Com plena procedência e ampla razão, editorial do jornal O Estado de S. Paulo de 29 de outubro do corrente ano (página A3) afirmou que “o debate da questão tanto no âmbito do Senado como nas instituições representativas das várias categorias de profissionais que atuam nas operações de investigação tende a assumir um caráter passional que não condiz com a objetividade e isenção que o tema exige.”
Com relação à Operação Lava Jato, é fato notório que ela alcançou centenas de situações e de pessoas; centenas de inquéritos e de ações penais foram instaurados; vários anos de prisão já foram impostos a numerosos réus; incontáveis buscas, prisões temporárias e preventivas, conduções coercitivas, quebras de sigilo bancário e fiscal, bloqueios de bens e outras medidas cautelares foram decretas sem que as dez salvadoras medidas existissem.
Por que o fundamento do perecimento da operação sem as dez medidas? Aliás, não se pode esquecer que as medidas serão, se aprovadas, incorporadas ao ordenamento jurídico e, obviamente, não se limitarão à Lava Jato, elas atingirão todas as situações jurídicas de natureza penal.
Um argumento igualmente enganoso atinge o projeto de lei do abuso de autoridade. Fala-se que, se transformado em lei, ele vai inibir a atuação das autoridades que combatem a corrupção. Surge, então, uma óbvia e consequente observação a esse argumento: será que até agora houve abuso nas ações contra os corruptos? Com a aprovação do projeto as futuras ações, sem os abusos, serão inócuas?
A resposta das autoridades será negativa. Não houve abusos e a Operação Lava Jato foi executada dentro da legalidade. Pois bem, assim sendo, isto é, não tendo havido excessos, por que temer uma lei que venha a criminalizar o abuso de autoridade? Os seus críticos deverão explicar melhor por que são contrários ao projeto. Quem não abusa não teme.
É estranho que até entidades representativas de magistrados estejam tomando posição contra o projeto de lei de abuso de autoridade. Em verdade, deveriam manifestar-se a favor da inserção no ordenamento jurídico de um instrumento de contenção dos excessos cometidos no exercício das atividades judiciais, acusatórias e policiais. Pois tais entidades têm, dentre o seus escopos, o de aprimorar o ordenamento jurídico.
Evidentemente, o projeto deverá ser debatido amplamente. De plano, devem ser criticados os dispositivos que criminalizam decisões de juízes e manifestações de promotores, com base em interpretações legais e em entendimentos doutrinários. Responsabilizar, como está no projeto, juízes que não concedam liberdade provisória, mesmo quando presentes os requisitos para tanto, ou promotores que ofereçam denúncias carentes de justa causa, como também está no projeto, é introduzir em nosso sistema penal o crime de hermenêutica.
Hipóteses como as acima citadas não invalidam o projeto, que, examinado, levará à conclusão de que não contém nenhuma restrição, nenhuma tentativa de inibição ao exercício das atividades investigativas, acusatórias e punitivas. Lembre-se que o projeto vai substituir a antiga lei de abuso de autoridade, promulgada em pleno regime militar, em 1966.
Leis impositivas de barreiras à ação punitiva estatal, em defesa das garantias e dos direitos individuais, existem em todos os países civilizados. E no Brasil o que se pretende é a adaptação da matéria aos tempos atuais.
O que se coíbe é o abuso, o exercício arbitrário dos poderes conferidos a cada um dos agentes do Estado responsáveis pelo sistema penal, desde a investigação até o julgamento, passando pela acusação.
Deve-se ter presente que as dez medidas não representam os dez mandamentos, como bem realçado pelo juiz Sergio Moro, assim como o projeto de lei do abuso de autoridade não representa um grilhão no pescoço das autoridades.
13 de novembro de 2016
Antônio Claudio Mariz de Oliveira é advogado criminal, da Advocacia Mariz de Oliveira.
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