O aspecto mais alarmante da crise brasileira é a persistência do descolamento entre os efeitos e as causas que os produzem no relato que o País faz do seu próprio drama. É esse o principal fator que autoriza a insistência no errado que, de degrau em degrau, nos foi levando às profundezas que alcançamos.
O exemplo da Petrobrás é veemente. Com tudo o que aconteceu, ninguém sequer menciona a hipótese da privatização, fenômeno que os historiadores do futuro provavelmente descreverão com a mesma pena com que os de hoje descrevem a Revolta da Vacina. No auge da fúria da epidemia, o País continua recusando aquilo que a humanidade inteira sabe ser a única cura possível para a corrupção sistêmica.
No 126.º ano da República, 30.º da “redemocratização”, com o País estertorando na overdose dos abusos deles, ninguém exige coisa tão elementar quanto o fim dos privilégios medievais dos donos do Estado e leis iguais para todos. Diante da “zebra” de um juiz disposto a aplicar sem desvios as que existem, o establishment permite-se reagir institucionalizando as prisões de luxo para políticos e funcionários ladrões porque aqui fora ninguém desafia sequer a ideia da “irredutibilidade” desses privilégios. É ponto pacífico que a discussão começa desse postulado para trás.
A incolumidade da presidente desse desastre faz parte desse quadro de hipnose coletiva. Dilma só continua aí depois de assinar as ordens para todas as falcatruas em investigação porque é do PT, e não pelas “razões técnicas” alegadas neste país, onde toda lei é flexível o bastante para virar o avesso de si mesma. Não duraria 24 horas se estivesse posicionada entre esse partido genética e estatutariamente golpista e o poder. Já vimos esse filme antes...
Sendo a crise o tamanho do Estado e o tamanho do Estado o tamanho do PT, é ilusão de noiva pensar que o partido a quem só o poder interessa e, desde o “petrolão”, só a permanência no poder pode salvar tome espontaneamente a iniciativa de arrumar o País pela redução de si mesmo. É essa certeza negativa que chamam por aí de “crise de confiança”. Ninguém duvida, aqui ou lá fora, que entre o Brasil e o PT, o seu emprego e os deles, a salvação da economia nacional e a própria, o PT escolha o PT. A ordem de Lula ao Foro de São Paulo é inequívoca: “Não admitir nenhum retrocesso em relação às posições conquistadas (à democracia) com as armas da democracia”. Enquanto grita “golpe!”, seguirá desmontando “as armas da democracia” para impedir que outros venham a usá-las contra ele. E nenhuma escapou ao desmanche. As raras manifestações de independência dentro dos “Poderes independentes” são hoje pontuais, isoladas e pronta e energicamente punidas.
Esse “corte de ministérios” não passará de um corte de nomes de ministérios, com os funcionários e seus privilégios permanecendo todos nas nossas costas. O objetivo exclusivo do PT e seu banqueiro amestrado moralmente “pequenininho” é enfiar-nos a CPMF, que ninguém mais que ele sabe o quanto é tóxica, para dar ao partido mais tempo para insistir no errado até que o erro se torne irreversível. Comprar a licença para nos esfolar legalmente entregando mais ministérios aos que nos têm esfolado ilegalmente é a prova da má-fé dessa manobra.
Não há mais tempo para ilusões. É preciso banir os eufemismos. A alternativa para reformas profundas é afundar lentamente na miséria profunda, agora a partir do patamar de uma indústria reduzida a 9% do PIB. O País inteiro sabe disso e a massa crítica de opinião necessária para reverter a catástrofe está presente, medida e até sobrando, mas não encontra canal para se expressar ou organizar.
Cada vez mais distantes do eleitorado, os partidos vivem de vender passes para dentro do aparelho do Estado. Pouquíssima gente, aliás, está acima desse tipo de conflito em Brasília. Lá, descartados o lúmpen e alguma coisa do setor de serviços, quem não trabalha na imprensa trabalha no Estado, “especialistas” e cientistas políticos incluídos.
Toda família, direta ou indiretamente, abriga alvos potenciais de uma reforma para valer. É nesse conflito que se apoia, também, a falta de curiosidade da maioria dos correspondentes sediados nas sociedades emancipadas pela democracia real pelas ferramentas institucionais de matar privilégios muito práticas, eficientes e fáceis de copiar com que elas contam. Mostra-se desses países só o que comportam de esdrúxulo ou terrível.
Conflitos de interesse, aparelhamento, vícios culturais, escassez de recursos e omissão de gestores alheios ao “core” institucional em que sempre se apoiou o negócio do jornalismo se combinam para deslocar o peso do Quarto Poder para mais perto dos outros três, o que agrava a orfandade da sociedade civil e pode ser decisivo no momento de crise como a que atravessa a democracia brasileira. Continuar servindo o prato requentado de uma infindável discussão entre iguais só contribui para esvaziar a pressão por mudanças reais. O que temos pela frente é uma escolha que pode ser a última. A hipótese de alteração de rota só se tornará real quando os fatos prevalecerem, nessa cobertura, sobre o “achismo” e o “contra-achismo”, que se anulam mutuamente, em que o País anda perdido.
Desde domingo, O Globo vem apresentando reportagens com os fatos e números do Estado obeso e seus colonizadores que dão a medida exata do que estamos trocando pelo quê quando sacrificamos o Brasil que sua para manter intacto o que só engorda. A representação do Brasil em Brasília ainda precisa se eleger e tem dado sinais de estar pronta a navegar a favor do vento se for essa a condição da sua sobrevivência. Se a imprensa nacional, começando pela das TVs abertas, se concentrar na exposição desses fatos e números que gritam por si, ao lado da exibição dos remédios que o mundo conhece há mais de cem anos para emagrecê-los, no horário em que atingem a massa dos brasileiros, os políticos terão o empurrão que falta para, finalmente, se deixarem constranger à emocionante experiência de jogar a favor do Brasil.
26 de setembro de 2015
Fernão Lara Mesquita
O exemplo da Petrobrás é veemente. Com tudo o que aconteceu, ninguém sequer menciona a hipótese da privatização, fenômeno que os historiadores do futuro provavelmente descreverão com a mesma pena com que os de hoje descrevem a Revolta da Vacina. No auge da fúria da epidemia, o País continua recusando aquilo que a humanidade inteira sabe ser a única cura possível para a corrupção sistêmica.
No 126.º ano da República, 30.º da “redemocratização”, com o País estertorando na overdose dos abusos deles, ninguém exige coisa tão elementar quanto o fim dos privilégios medievais dos donos do Estado e leis iguais para todos. Diante da “zebra” de um juiz disposto a aplicar sem desvios as que existem, o establishment permite-se reagir institucionalizando as prisões de luxo para políticos e funcionários ladrões porque aqui fora ninguém desafia sequer a ideia da “irredutibilidade” desses privilégios. É ponto pacífico que a discussão começa desse postulado para trás.
A incolumidade da presidente desse desastre faz parte desse quadro de hipnose coletiva. Dilma só continua aí depois de assinar as ordens para todas as falcatruas em investigação porque é do PT, e não pelas “razões técnicas” alegadas neste país, onde toda lei é flexível o bastante para virar o avesso de si mesma. Não duraria 24 horas se estivesse posicionada entre esse partido genética e estatutariamente golpista e o poder. Já vimos esse filme antes...
Sendo a crise o tamanho do Estado e o tamanho do Estado o tamanho do PT, é ilusão de noiva pensar que o partido a quem só o poder interessa e, desde o “petrolão”, só a permanência no poder pode salvar tome espontaneamente a iniciativa de arrumar o País pela redução de si mesmo. É essa certeza negativa que chamam por aí de “crise de confiança”. Ninguém duvida, aqui ou lá fora, que entre o Brasil e o PT, o seu emprego e os deles, a salvação da economia nacional e a própria, o PT escolha o PT. A ordem de Lula ao Foro de São Paulo é inequívoca: “Não admitir nenhum retrocesso em relação às posições conquistadas (à democracia) com as armas da democracia”. Enquanto grita “golpe!”, seguirá desmontando “as armas da democracia” para impedir que outros venham a usá-las contra ele. E nenhuma escapou ao desmanche. As raras manifestações de independência dentro dos “Poderes independentes” são hoje pontuais, isoladas e pronta e energicamente punidas.
Esse “corte de ministérios” não passará de um corte de nomes de ministérios, com os funcionários e seus privilégios permanecendo todos nas nossas costas. O objetivo exclusivo do PT e seu banqueiro amestrado moralmente “pequenininho” é enfiar-nos a CPMF, que ninguém mais que ele sabe o quanto é tóxica, para dar ao partido mais tempo para insistir no errado até que o erro se torne irreversível. Comprar a licença para nos esfolar legalmente entregando mais ministérios aos que nos têm esfolado ilegalmente é a prova da má-fé dessa manobra.
Não há mais tempo para ilusões. É preciso banir os eufemismos. A alternativa para reformas profundas é afundar lentamente na miséria profunda, agora a partir do patamar de uma indústria reduzida a 9% do PIB. O País inteiro sabe disso e a massa crítica de opinião necessária para reverter a catástrofe está presente, medida e até sobrando, mas não encontra canal para se expressar ou organizar.
Cada vez mais distantes do eleitorado, os partidos vivem de vender passes para dentro do aparelho do Estado. Pouquíssima gente, aliás, está acima desse tipo de conflito em Brasília. Lá, descartados o lúmpen e alguma coisa do setor de serviços, quem não trabalha na imprensa trabalha no Estado, “especialistas” e cientistas políticos incluídos.
Toda família, direta ou indiretamente, abriga alvos potenciais de uma reforma para valer. É nesse conflito que se apoia, também, a falta de curiosidade da maioria dos correspondentes sediados nas sociedades emancipadas pela democracia real pelas ferramentas institucionais de matar privilégios muito práticas, eficientes e fáceis de copiar com que elas contam. Mostra-se desses países só o que comportam de esdrúxulo ou terrível.
Conflitos de interesse, aparelhamento, vícios culturais, escassez de recursos e omissão de gestores alheios ao “core” institucional em que sempre se apoiou o negócio do jornalismo se combinam para deslocar o peso do Quarto Poder para mais perto dos outros três, o que agrava a orfandade da sociedade civil e pode ser decisivo no momento de crise como a que atravessa a democracia brasileira. Continuar servindo o prato requentado de uma infindável discussão entre iguais só contribui para esvaziar a pressão por mudanças reais. O que temos pela frente é uma escolha que pode ser a última. A hipótese de alteração de rota só se tornará real quando os fatos prevalecerem, nessa cobertura, sobre o “achismo” e o “contra-achismo”, que se anulam mutuamente, em que o País anda perdido.
Desde domingo, O Globo vem apresentando reportagens com os fatos e números do Estado obeso e seus colonizadores que dão a medida exata do que estamos trocando pelo quê quando sacrificamos o Brasil que sua para manter intacto o que só engorda. A representação do Brasil em Brasília ainda precisa se eleger e tem dado sinais de estar pronta a navegar a favor do vento se for essa a condição da sua sobrevivência. Se a imprensa nacional, começando pela das TVs abertas, se concentrar na exposição desses fatos e números que gritam por si, ao lado da exibição dos remédios que o mundo conhece há mais de cem anos para emagrecê-los, no horário em que atingem a massa dos brasileiros, os políticos terão o empurrão que falta para, finalmente, se deixarem constranger à emocionante experiência de jogar a favor do Brasil.
26 de setembro de 2015
Fernão Lara Mesquita
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