"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sábado, 26 de setembro de 2015

KAPUTT, A DERROCADA

Já foi Auf Wiedersehen, até a vista; depois, Alles Blau, tudo azul; mais recentemente, a expressão alemã mais popular no Brasil passou a ser Das Auto, o carro, honrosa referência à linha de automóveis fabricados pela Volkswagen, não tão luxuosos como os Mercedes ou BMW, porém sólidos, acessíveis, duráveis – padrão Alemanha: confiável e correto.

A falsificação dos resultados dos testes de poluição através de um software instalado nos carros movidos a diesel gerou o maior escândalo da indústria automobilística mundial, obrigando o gigante de quase 80 anos a fazer um colossal recall de cerca de 11 milhões de carros em todo o mundo. 
Junto veio uma devastadora desvalorização de suas ações, pedido de demissão do presidente do grupo e o inescapável efeito dominó que maculou a imagem política, econômica e moral do país-milagre.
Intoxicados pela ótica e pela semântica americana, estamos agarrados ao termo recall, fixados na consequência da insana burla tecnológica, esquecidos do fato em si, seus significados e as evocações que produz na comunidade mundial. A mídia alemã designa o episódio como “VW-Skandal” (Escândalo Volkswagen), evidentemente mortificada com o seu aspecto moral.

Kaputt (em alemão, ruína ou debacle) foi o título de um romance-reportagem publicado em 1944 que converteu o jornalista italiano Curzio Malaparte numa estrela literária graças à sádica maestria em evocar o clima de horror e perturbação daquele fim da guerra. Ex-fascista convertido ao comunismo, Malaparte flagrou com nojo e fascinação os escombros de uma civilização apodrecida, ainda insepulta.
Ironicamente, o atual kaputt não foi produzido por um país arruinado ou alucinado. Ao contrário, o capitalismo alemão é dos menos selvagens e mais inovadores, fortemente impregnado pela longa convivência com a social-democracia e com os valores que sempre permearam a cultura alemã antes do inferno nazista. Angela Merkel simboliza uma era de convergências pragmáticas, pós-ideológicas, tolerantes (não obstante os surtos xenófobos de grupos de extrema-direita).

Tal como importantes corporações alemãs, a Volkswagen é uma empresa que se pretende verde, comprometida com a preservação ambiental e a defesa da sustentabilidade. O diabólico projeto de falsificação de dados – digno de um filme de ficção científica – foi empreendido pela subsidiária norte-americana para driblar as exigências locais e abocanhar um mercado sensível às questões ecológicas.

E, como se não bastassem infortúnios, a revelação da trapaça ocorre justamente na véspera da visita aos Estados Unidos do papa Francisco, o mais verde de todos os pontífices, militante apaixonado pela causa da preservação da espécie humana.

A Volks, a Alemanha, a indústria automobilística mundial e as tecnologias irresponsáveis estão kaputt – partidas, rotas, arruinadas, deterioradas. Numa hora que deveria ser marcada pela busca da verdade, fomos enfiados num gigantesco faz-de-conta, cada vez mais amplo, espesso, indevassável. Por casualidade ou causalidade, tudo nos aproxima do tenebroso kaputt de 1944 que pensávamos reparado. Falta muito.


26 de setembro de 2015
Alberto Dines

Nenhum comentário:

Postar um comentário