Tocar a economia segundo as regras elementares da aritmética é coisa tão universalmente aceita hoje que até a Bolívia já faz isso, by apointement do Foro de São Paulo.
Aqui ainda não chegamos a tanto. Dona Dilma reage à rebeldia dos algarismos como lobisomem reage à lua cheia. É mais forte que ela e isso tem um preço proibitivo, sobretudo quando vem somar-se à criação de uma “nova nobreza” que chega às portas de acesso aos dinheiros públicos em chusmas e com uma fome ancestral absolutamente fora de controle.
O resultado aí está.
Depois de três semanas e 19 horas de resistência da oposição (heroica, pode-se dizer, frente ao padrão estabelecido desde a chegada do PT ao poder) a “base aliada”, com o escárnio adicional da operação ter estado sob o comando do “dono” da Transpetro, o maior feudo individual do “petrolão”, conseguiu reescrever a Lei de Diretrizes Orçamentárias para enquadrá-la às necessidades do governo.
A democracia moderna, registre-se, nasce do movimento exatamente inverso no ano da graça de 1605, na Inglaterra, quando, ao declarar o rei James I "under God and under the law" nos albores do absolutismo monárquico na Europa Continental, o juiz supremo Edward Coke planta o marco fundamental do Estado de Direito, sob o império da lei à qual tudo e todos, especialmente o governo e os governantes, devem estar subordinados (veja essa história aqui).
Não é, portanto, que a democracia brasileira tenha “ido para o brejo” com o naufrágio da Lei de Diretrizes Orçamentárias. Na verdade ela nunca saiu de lá, e é importante que os brasileiros se deem conta disso. Nós caímos para a vertente do absolutismo monárquico lá naquele ano longínquo e ainda não nos livramos dele.
A Lei de Responsabilidade Fiscal, da qual a LDO é o gatilho acionador, marcou, entretanto, o único momento em que a democracia brasileira realmente “pegou pé” por baixo do atoleiro sem fundo em que tem vivido meio afogada desde sempre. Pois foi ela a primeira lei de nossa história republicana a ir diretamente à essência do que define a relação de servidão do indivíduo para com o Estado na tradição patrimonialista ibérica, armando a cidadania contra a prerrogativa deste de confiscar arbitrariamente o resultado do seu trabalho pelo instrumento indireto da esbórnia fiscal que gera inflação e mata empregos e futuros. Foi ela a primeira lei do nosso arsenal jurídico a criminalizar e responsabilizar essa forma de esbulho generalizado e "randômico", senão ainda com a merecida pena de prisão, ao menos com a da perda do mandato daqueles que até aqui têm podido traí-los impunemente.
É um retrocesso acachapante para o momento em que um país à beira da descrença procura agarrar-se à idéia de um mutirão nacional de recuperação da credibilidade e sonha com um passo adiante na luta contra a impunidade, mas esse marco está estabelecido.
O resto do que aconteceu pertence ao departamento policial e não propriamente ao da política e a nacionalidade está atenta a essa realidade.
Desde o momento em que a auditora e certificadora internacional de balanços, Pricewaterhouse, declarou publicamente que não poderia avalizar o balanço da Petrobras enquanto Sérgio Machado, o "operador" de Renan Calheiros na Transpetro, não fosse posto para fora da empresa, o Congresso Nacional se tinha convencido de que este senhor entrara, finalmente, em trajetória descendente e estava fora do páreo pela liderança do Senado.
Mas desde que Dilma Rousseff, em plena tempestade do "petrolão", resgatou-o do opróbio e fez dele o seu campeão na luta sem tréguas contra o último baluarte da democracia e do povo brasileiro contra o arbítrio econômico pela aniquilação da LDO, a maré inverteu-se.
Sua vitória soa como a reconfirmação de que só o crime compensa, faz dele novamente o favorito para esse posto e arma a banda podre do Congresso Nacional para resistir ao vendaval do "petrolão". Vai sem dizer que não há mais quem duvide que a Transpetro permanecerá, como sempre, pagando-lhe pedágio por qualquer litro do petróleo ou dos combustíveis que movem o país que entrem ou saiam de portos brasileiros.
É mais que provável que, pelo serviço prestado, Renan Calheiros terá da "Dilma-doa-a-quem-doer" da presente temporada da comédia petista o mesmo tratamento que a "Dilma-faxineira" da temporada anterior deu aos ladrões flagrados roubando a partir do comando dos ministérios de seu governo: a substituição por outro elemento da mesma organização, a menos que certificadores internacionais nos salvem outra vez à força de ameaças de sanções financeiras pesadas.
Mas, seja como for, eles não enganam mais ninguém. Todo mundo sabe, dentro e fora do país, que é de criminosos que se trata. Será preciso, é verdade, não apenas manter mas multiplicar a mobilização popular e das instituições ainda saudáveis do país para evitar que o STF engavete definitivamente as culpas dos paus mandantes do “petrolão”, mas o país inteiro sabe, agora, que está lidando com criminosos e não com salvadores da pátria.
O lado positivo a ser comemorado, à parte este, é que a oposição lutou pela preservação da conquista da criminalização da esbórnia fiscal com o empenho correspondente ao seu real valor, o que não é pouca coisa para quem passou os últimos 12 anos em dúvida sobre em que, afinal de contas, acreditava. Para que não se chore uma derrota completa, resta o consolo de assinalar que a Lei de Diretrizes Orçamentárias é um componente do conjunto maior da Lei de Responsabilidade Fiscal que, pelo menos formalmente, ainda sobrevive no horizonte constitucional onde estupros como o que finalmente se deu na madrugada de sexta-feira no Congresso Nacional são mais difíceis de se consumar.
Alteraram-se os limites a partir dos quais os governantes incorrem em crime de gastança; ficará impune mais este que o praticou com todos os agravantes possíveis. Mas a gastança continua sendo crime e continua em pé a perspectiva formal de responsabilização se os novos limites estabelecidos também vierem a ser violados.
Não é grande consolo, dirão os humilhados de hoje que o Congresso dos Renan Calheiros condena a serem ofendidos, a partir de amanhã, pela destruição do que construíram nos últimos anos em mais este “ajuste” de mão única que está em gestação. Mas a dor que daí vai decorrer e absolutamente não será pequena é essencial para compor a “vacina” contra estelionatários eleitorais futuros. E isto é alguma coisa se olhado pela perspectiva da velocidade da História.
09 de dezembro de 2014
vespeiro
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