O mais importante legado que Joaquim Barbosa deixa como ministro e presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) é a construção sólida do relatório que quebrou um paradigma. Antes da Ação Penal 470, a convicção no país era que poderosos não seriam condenados nem cumpririam pena. A decisão foi colegiada, mas o mais decisivo para o resultado foi o trabalho do relator.
A ação era complexa, atingia o coração do poder do governo que o havia conduzido à mais alta corte do país. Joaquim Barbosa conseguiu separar convicções que eventualmente tivesse da sua função institucional. Fosse outro o caminho escolhido pelo relator, provavelmente o desfecho seria diferente.
O relatório de Joaquim Barbosa teve ainda o mérito de lembrar para todos os cidadão que acompanharam as longas e cansativas sessões do Supremo toda a urdidura que se deu dentro do governo envolvendo ministros, dirigentes partidários, parlamentares, publicitários e banqueiros para desviar dinheiro público. Como a engenharia financeira era complexa, se não fosse bem explicada, como ele o fez, a população poderia não entender. Os juízes decidem pelos autos, e não para a opinião pública, mas é melhor quando a maioria entende as sentenças.
A Ação Penal 470 é a mais importante decisão do STF em muitos anos. Ela será estudada, criará jurisprudência e abrirá novos caminhos para punir crimes de corrupção. Ela quebrou a cadeia da impunidade. Claro que nenhum caminho é uma reta. Há retrocessos. Podem ocorrer fatos como a incompreensível decisão do ministro Teori Zavaski na Operação Lava Jato. Ele recuou a jato da ordem de soltar todos os investigados, mas houve tempo para deixar do lado de fora das grades o ex-diretor de abastecimento da Petrobras Paulo Roberto Costa.
O que ficará da sua passagem de uma década no Supremo não são as polêmicas, palavras ásperas trocadas com os colegas, nem mesmo a relação com os jornalistas. Sua marca será a de ter redigido um voto tão sólido juridicamente que mesmo os ministros que divergiam dele acompanharam no todo ou em parte o seu entendimento sobre os crimes cometidos no mensalão.
Ele tem ambições políticas, mas talvez não haja tempo para esse projeto agora. Talvez, também, ele nem tenha sucesso nesse caminho — se o buscar — apesar de ser hoje incentivado, por onde vai, por pessoas que pedem para que ele se candidate.
Entrou no Supremo no mesmo dia que Cezar Peluso e Ayres Britto, levando na cor da pele a marca de um ineditismo estranho. Num país com metade da população classificada como preta ou parda, ele foi o primeiro negro a ocupar o cargo de ministro. Sai, infelizmente, sendo o único até agora. Após entrar a primeira mulher, veio a segunda e a terceira. Ellen Gracie quebrou a barreira de vidro, forte, mas invisível, que impedia o avanço das mulheres naquela trincheira, apesar de continuar a hegemonia masculina. Joaquim Barbosa não foi seguido por outros negros, infelizmente. E, num país com a diversidade do Brasil, deveria ser normal, a ponto de sequer ser notado, que um negro ocupasse o posto de ministro do Supremo.
Esperava-se dele uma defesa das ações afirmativas, até porque ele é autor de um livro sobre o tema. No julgamento das cotas, no entanto, ele falou pouco e teve uma importância lateral. Não foi necessária sua mobilização. O voto do ministro Ricardo Lewandowski foi seguido por todos. Houve aprovação unânime da política. Ele foi mais um no meio de todo o colegiado. Melhor assim.
A sua aposentadoria precoce tem pelo menos o mérito de relembrar uma antiga tradição do Supremo que foi abandonada há alguns anos: a de que após exercer a presidência, o ministro deixava o STF. Isso permite uma renovação mais rápida da composição da corte. Por outro lado, num país de aposentados jovens, que precisa tanto mudar a mentalidade sobre a hora da retirada, não é bom reforçar o defeito ao se aposentar aos 59 anos.
A partir do fim de junho, o STF voltará a ser mais homogêneo e isso não é virtude. A diversidade de gênero, cor, regiões do país e origem social é o mais desejável num país como o Brasil. Mas o mais relevante da sua passagem pelo Supremo não foi o toque de diversidade que deu, mas as avenidas que abriu para que o país possa daqui para diante combater a corrupção.
A ação era complexa, atingia o coração do poder do governo que o havia conduzido à mais alta corte do país. Joaquim Barbosa conseguiu separar convicções que eventualmente tivesse da sua função institucional. Fosse outro o caminho escolhido pelo relator, provavelmente o desfecho seria diferente.
O relatório de Joaquim Barbosa teve ainda o mérito de lembrar para todos os cidadão que acompanharam as longas e cansativas sessões do Supremo toda a urdidura que se deu dentro do governo envolvendo ministros, dirigentes partidários, parlamentares, publicitários e banqueiros para desviar dinheiro público. Como a engenharia financeira era complexa, se não fosse bem explicada, como ele o fez, a população poderia não entender. Os juízes decidem pelos autos, e não para a opinião pública, mas é melhor quando a maioria entende as sentenças.
A Ação Penal 470 é a mais importante decisão do STF em muitos anos. Ela será estudada, criará jurisprudência e abrirá novos caminhos para punir crimes de corrupção. Ela quebrou a cadeia da impunidade. Claro que nenhum caminho é uma reta. Há retrocessos. Podem ocorrer fatos como a incompreensível decisão do ministro Teori Zavaski na Operação Lava Jato. Ele recuou a jato da ordem de soltar todos os investigados, mas houve tempo para deixar do lado de fora das grades o ex-diretor de abastecimento da Petrobras Paulo Roberto Costa.
O que ficará da sua passagem de uma década no Supremo não são as polêmicas, palavras ásperas trocadas com os colegas, nem mesmo a relação com os jornalistas. Sua marca será a de ter redigido um voto tão sólido juridicamente que mesmo os ministros que divergiam dele acompanharam no todo ou em parte o seu entendimento sobre os crimes cometidos no mensalão.
Ele tem ambições políticas, mas talvez não haja tempo para esse projeto agora. Talvez, também, ele nem tenha sucesso nesse caminho — se o buscar — apesar de ser hoje incentivado, por onde vai, por pessoas que pedem para que ele se candidate.
Entrou no Supremo no mesmo dia que Cezar Peluso e Ayres Britto, levando na cor da pele a marca de um ineditismo estranho. Num país com metade da população classificada como preta ou parda, ele foi o primeiro negro a ocupar o cargo de ministro. Sai, infelizmente, sendo o único até agora. Após entrar a primeira mulher, veio a segunda e a terceira. Ellen Gracie quebrou a barreira de vidro, forte, mas invisível, que impedia o avanço das mulheres naquela trincheira, apesar de continuar a hegemonia masculina. Joaquim Barbosa não foi seguido por outros negros, infelizmente. E, num país com a diversidade do Brasil, deveria ser normal, a ponto de sequer ser notado, que um negro ocupasse o posto de ministro do Supremo.
Esperava-se dele uma defesa das ações afirmativas, até porque ele é autor de um livro sobre o tema. No julgamento das cotas, no entanto, ele falou pouco e teve uma importância lateral. Não foi necessária sua mobilização. O voto do ministro Ricardo Lewandowski foi seguido por todos. Houve aprovação unânime da política. Ele foi mais um no meio de todo o colegiado. Melhor assim.
A sua aposentadoria precoce tem pelo menos o mérito de relembrar uma antiga tradição do Supremo que foi abandonada há alguns anos: a de que após exercer a presidência, o ministro deixava o STF. Isso permite uma renovação mais rápida da composição da corte. Por outro lado, num país de aposentados jovens, que precisa tanto mudar a mentalidade sobre a hora da retirada, não é bom reforçar o defeito ao se aposentar aos 59 anos.
A partir do fim de junho, o STF voltará a ser mais homogêneo e isso não é virtude. A diversidade de gênero, cor, regiões do país e origem social é o mais desejável num país como o Brasil. Mas o mais relevante da sua passagem pelo Supremo não foi o toque de diversidade que deu, mas as avenidas que abriu para que o país possa daqui para diante combater a corrupção.
02 de junho de 2014
Miriam Leitão, O Globo
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