A entrevista filmada da psiquiatra Nise da Silveira (1905-1999) dada a Leon Hirszman (1937-1987) em 1986, pouco depois do documentário Imagens do inconsciente ter sido concluído, não tem caráter biográfico. Concentra-se em duas questões que Nise considerava cruciais, a terapia ocupacional, chamada por um doente de “a emoção de lidar”, e a “tragédia do egresso”, definido por ela como sendo o doente internado que tem alta, deixa o hospital e não encontra “espaço na família e na sociedade”.
Seis anos depois dessa filmagem, Dulce Pandolfi registrou em áudio o depoimento de cunho biográfico que segue abaixo, em versão resumida, incluindo ao final o relato de como ela conheceu Nise. É uma bela introdução à entrevista filmada por Leon. (EE)
*
Gravei o depoimento de Nise no dia 26 de setembro de 1992. Ela estava com 87
anos e há mais de cinco dependente de uma cadeira de rodas. A entrevista foi
realizada no seu quarto, na rua Marques de Abrantes, no Flamengo. Foram 3 horas
de gravação. Eu, sua sobrinha por afinidade, historiadora e pesquisadora do
Cpdoc da Fundação Getúlio Vargas, há muito queria incluí-lá no rol dos nossos
depoentes. Apesar da nossa amizade e da minha insistência, Nise sempre resistia.
Dizia que não via necessidade de tornar pública a sua vida privada. Mas naquele
dia, conversamos com muita tranqüilidade. No seu belíssimo depoimento, que
infelizmente não foi concluído, Nise falou da infância, dos seus estudos, da
militância, da sua prisão.Ainda muito pequena, Nise entrou em contato com o que chamava “os grandes enigmas da vida”. Com muito humor, ela conta: “Desde muito cedo eu estudava piano. Minha mãe era intuitiva e não tinha paciência para ensinar... Eu ficava fixada nos meus exercícios de piano. Eu lá atenta, errava mas eu não sabia que tinha errado. A casa era muito ampla e minha mãe lá longe, andava de um lado para o outro e dizia para mim: “olha o lá sustenido”. Eu não podia compreender esse fenômeno. Era um problema muito grande para mim. Foi o primeiro grande enigma da minha vida. Minha vida também foi marcada por outro enigma.
Quando eu tinha de quatro para cinco anos ouvia meu avô recitar poemas de Castro Alves: “Vai Colombo, abre a cortina da minha eterna oficina e tira a América de lá.” Eu achava aquilo extraordinário: que oficina era essa? Não sabia direito o que era a América mas sabia que era uma coisa grande. Como Colombo ia abrir uma cortina? ...”
Aos quinze anos, Nise resolveu estudar medicina em Salvador, na Bahia. Os pais aceitaram bem a ideia. Para ingressar na faculdade, teve que falsificar a idade para 16 anos. Foi conduzida para Salvador pelo pai. Ficou morando num pensionato. Era a única mulher da turma.
Nise formou-se em Medicina em 1926 e no ano seguinte seu pai morreu. Em 1928, com 23 anos, decidiu mudar para o Rio de Janeiro. Tinha ilusões de conseguir facilidades para exercer a sua profissão. “Viajei com a cara e a coragem”, disse Nise. Foi morar, num quarto alugado, em Santa Teresa na rua do Curvelo. Era vizinha de Laura e Otávio Brandão, um dos maiores dirigentes e intelectuais do Partido Comunista. Nasceu daí uma grande amizade e uma grande admiração. “Nunca vi uma casal como aquele!”. Pouco tempo depois, em 1931, Otávio Brandão, perseguido político, foi obrigado a deixar o país.
Nise ingressou no Partido Comunista no início da década de 1930. A experiência durou perto de 3 anos. Diz ela: “Eu era interessada nas coisas políticas do país. Mas sempre tive muita dificuldade em me acomodar em organizações. Tanto que não fiz formação psicanalítica. E tive oportunidade para isso. Nem mesmo em Zurique fiz a formação jungiana. Eu não me acomodava dentro dos esquemas do Partido Comunista. Embora eu fosse muito rígida. Todos diziam que eu era muito rígida, coisa que eu reconheço que sou.
Em qualquer trabalho que faço eu sei que sou rígida. Mas eu queria fazer concurso público para medicina e os companheiros do partido não se conformavam que eu me dedicasse tanto a esse concurso. E eu me dedicava. Eu estudava dia e noite e, naturalmente, faltava muito às reuniões. O chefe da minha célula era um alfaiate. Ele era muito burro e me repreendia fortemente. [...] Eu participava de reuniões, lia muitos documentos e dava assistência médica para os companheiros do partido. Mas acabaram me expulsando do partido. Eu fui expulsa, acusada de trotksquista. Eu discordava de certas coisas.”
Entre o final de 1935 e inícios de 1936, milhares de pessoas foram presas em todo o país. Entre elas, estava Nise. “Eu havia feito o concurso e morava no hospital, no hospital psiquiátrico. Eu tinha muitos livros no meu quarto. Uma enfermeira viu e me denunciou. Na noite de 26 de março de 36 saí presa do hospital. Eu já tinha sido presa em janeiro do mesmo ano. Passei apenas algumas horas presa. Mas desta vez foi diferente. Mas eu aguentei bem. Fui primeiro para a rua da Relação, onde ficava o DOPS.
Quando cheguei lá, o tenente Américo me perguntou: ‘Doutora, quer tomar alguma café?’ Nunca me chamaram tanto de doutora! Eu disse ‘não’. Então chegou um tira que considero um ser sobrenatural e me disse: a senhora fez muito mal em não aceitar o café. O Getúlio vai decretar estado de guerra e a senhora não sabe quando vai ter oportunidade de tomar outro. Nem pense em habeas corpus. A situação está muito grave. E aí ele perguntou: ‘Aceita o café?’ Eu aceitei. Mandaram buscar café com pão e manteiga. Esse policial foi um ser sobrenatural. Nunca mais eu o vi. Acho que era um anjo...
Fui transferida para o presídio na rua Frei Caneca. Saí de táxi juntamente
com uma pessoa presa que estava no DOPS: era um diplomata. Talvez por isso
fomos de táxi para a Frei Caneca. O ambiente era terrível, um corredor todo
pintado de roxo. Me puseram numa cela no térreo que tinha um número incrível de
baratas... Um ladrão (eles são muito amáveis) revolveu varrer a sala para mim.
Mas, passei a noite acordada. A imundice era grande. Aí eu tomei uma atitude
enérgica. Perguntei: por que estou nessa imundice? Eu quero ser colocada junto
com as outras presas políticas. Eu fui levada para a famosa sala 4, onde
encontrei Eneida, Maria Werneck e muitas outras presas. Todas inteiramente
separadas dos homens, presos em quantidade grande. Mas se as mulheres subissem
nas grades poderiam avistar os homens.
Quando cheguei na cela, Isnard Teixiera, um médico muito amigo que também estava preso, preparou uma recepção para mim. Ele gritava: ‘Nise, Nise.’ Isnard parecia um mestre de cerimônias. Ele perguntou: ‘você quer conhecer o Graciliano?’ Graciliano Ramos tinha chegado há pouco a bordo do navio Manaus. Estava muito fraco, não tinha condições de conhecer ninguém. Mas Graciliano subiu na grade dele e eu subi na minha grade. E ficamos parados sem nos falar. Isso constitui uma das mais belas páginas do seu livro Memórias do Cárcere.
Quando cheguei na cela, Isnard Teixiera, um médico muito amigo que também estava preso, preparou uma recepção para mim. Ele gritava: ‘Nise, Nise.’ Isnard parecia um mestre de cerimônias. Ele perguntou: ‘você quer conhecer o Graciliano?’ Graciliano Ramos tinha chegado há pouco a bordo do navio Manaus. Estava muito fraco, não tinha condições de conhecer ninguém. Mas Graciliano subiu na grade dele e eu subi na minha grade. E ficamos parados sem nos falar. Isso constitui uma das mais belas páginas do seu livro Memórias do Cárcere.
Na minha cela estava também Olga Prestes, grávida, e Elisa Berger. Ambas
depois foram deportadas para a Alemanha. Elisa era fantástica! Essa era uma
revolucionária de carreira. O marido dela Harry Berger também estava preso e
sofreu até enlouquecer. Eles torturavam Berger de uma maneira terrível.
As torturas eram feitas de madrugada e Elisa acordava toda madrugada. Eu tinha um sono terrível, mesmo na prisão eu não perdia o sono. A cama de Elisa cama era junto da minha. Tinha uma cortina na frente. Elisa, com insônia vinha me cobrir e eu acabava ficando acordada com ela. A Olga ficou mais perto da Maria Werneck e eu me liguei mais a Elisa por causa dessas noites. Eu me sentava na cama e escutava as histórias. Ouvir aquilo tudo me atingiu muito. Para mim tudo isso, aquelas torturas era inimagináveis. Eu não tinha formação revolucionária. E Elisa dizia: ‘Vocês são uma crianças.’ De fato. Aprendemos muito lá”.
As torturas eram feitas de madrugada e Elisa acordava toda madrugada. Eu tinha um sono terrível, mesmo na prisão eu não perdia o sono. A cama de Elisa cama era junto da minha. Tinha uma cortina na frente. Elisa, com insônia vinha me cobrir e eu acabava ficando acordada com ela. A Olga ficou mais perto da Maria Werneck e eu me liguei mais a Elisa por causa dessas noites. Eu me sentava na cama e escutava as histórias. Ouvir aquilo tudo me atingiu muito. Para mim tudo isso, aquelas torturas era inimagináveis. Eu não tinha formação revolucionária. E Elisa dizia: ‘Vocês são uma crianças.’ De fato. Aprendemos muito lá”.
Nise ficou presa um ano e quatro meses. Recorda o dia em que foi solta.
“Minha mãe tinha vindo me buscar. E levou-me para o Hotel OK, na rua Senador
Dantas. Lá tomei um banho e depois fui jantar na casa da Zoila [Zoila Teixeira,
mulher de Isnard Teixiera] . Eu estava muito feliz. Foi em pleno São João.”
(...) “A prisão foi uma experiência decisiva para a minha vida. Uma vivência
muito marcante e fiquei com mania de liberdade. Eu já não era muito adaptada...
Era revoltada com os padrões. Logo que saí da prisão, tomava um bonde ao acaso,
descia, tomava outro. Um dia vi um bonde chamado Alegria e eu disse: é nesse que
eu vou. Descobri que Alegria era um bairro horroroso. Mas, pensei: se eu quiser
eu desço do bonde. Eu tinha o sentimento de poder fazer o que quisesse. Sai da
prisão com esse sentimento.”
Depois da prisão, Nise passou 8 anos desempregada. Diz ela: “Comi o pão que o
diabo amassou”. Era o período do Estado Novo, uma ditadura chefiada por Getúlio
Vargas que vigorou até 1945, ocasião em que acabou a Segunda Guerra Mundial. Da
ficha policial de Nise constava: “Pertence a um círculo de ideias que a
incompatibilizam com o Serviço Público”. Nesse período, estava casada com Mário
Magalhães da Silveira, também médico, seu primo legítimo. Até 1944, ficou
totalmente dependente de Mário. “Foi uma coisa desagradável. Mário pagava
tudo”. Proibida de exercer a sua profissão, uma das suas distrações prediletas,
além de andar de bonde, era ler, estudar psiquiatria e frequentar livrarias. “Ia
muito à livraria José Olímpio. Lá encontrava José Lins, Graciliano. Havia um
sereno dos intelectuais”. Também ia muito à livraria Odeon, na Avenida Central.
Mas Nise tinha medo de ser presa de novo. “Passei um período escondida pouco
depois de ser solta. As pessoas me evitavam. Eu achava eles covardes. Os que me
procuravam eu dava afeto”.
Depois de 1944, Nise voltou ao trabalho, foi reintegrada no Serviço Público. Como ela disse no final da sua entrevista “aí começa uma outra história. ” Entre 1945 e 1964, o Brasil viveu um regime democrático. Nesse período Nise criou o Museu do Inconsciente e a Casa das Palmeiras.
Depois de 1944, Nise voltou ao trabalho, foi reintegrada no Serviço Público. Como ela disse no final da sua entrevista “aí começa uma outra história. ” Entre 1945 e 1964, o Brasil viveu um regime democrático. Nesse período Nise criou o Museu do Inconsciente e a Casa das Palmeiras.
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Estudante de Ciências Sociais, perseguida pelo regime, Dulce Pandolfi saiu do
Recife, sua terra natal, em 1970, e veio para o Rio.“Eu namorava Alexandre, sobrinho de Nise. Logo que cheguei, ele avisou: ‘Nise e Mário querem lhe conhecer.’ Fomos à casa deles num sábado.
Alexandre havia me prevenido sobre tudo. Sobretudo sobre os gatos. Mas
confesso que o impacto foi grande. Quando chegamos, Mário nos recebeu eufórico.
Foi logo dizendo que a doutora (como se referia sempre a Nise), estava em cima,
mas que desceria logo. Eles tinham dois apartamentos: num eles moravam, no outro
a doutora estudava. A singeleza dos móveis destoava do requinte de tudo mais:
dos papos, dos livros, das comidas, dos quadros, dos amigos. Geladeira na sala,
sofá de plástico cinza e, na parede, um retrato de Nise pintado por Di
Cavalcanti. Os gatos transitavam livremente pela casa, inclusive, pela mesa.
Nise, como sua mãe, não sabia fazer um café. Mas Mário era um grande cozinheiro.
Havia preparado uma peixada, um prato constante dos finais de semana. Quando o
almoço estava na mesa, chegou a doutora. O encontro foi impactante. Nise
franzina, singelamente vestida, voz fraca, olhar forte. Diferentemente de Mário,
Nise não demonstrava euforia. Mas transmitia muita solidez e uma certa
cumplicidade. Primeira coisa que fez foi me apresentar aos gatos. Lorde Byron
era o predileto. Eu não tinha a menor simpatia por gatos e ela deve ter
percebido minha frieza. Para mim, o primeiro contato com Nise também representou
um enigma. A despeito dos gatos, aquele almoço foi o primeiro de uma série.
Plagiando minha depoente ao se referir a Otávio e Laura Brandão, confesso que
nunca conheci casal tão forte como Mário e Nise.
Pouco tempo depois daquele encontro, eu e Alexandre fomos presos. A
solidariedade foi total. Quando estávamos no DOPS, Nise, tentou nos visitar. Lá
chegando, 35 anos depois da sua prisão, encontrou um dos seus carcereiros. Um
ano e quatro meses depois, eu fui solta. Assim como fazia com Elisa Berger,
Nise, pacientemente, muitas vezes ouviu minhas histórias. Mas essa também é uma
outra história. Confesso ainda que se a prisão marcou muito a minha vida, o
convívio com Nise, também me marcou profundamente. Sem dúvida, a sua trajetória
singular e exemplar deixou marcas profundas, não só na psiquiatria, mas na
história e na vida do nosso país.
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Versão resumida do texto apresentado por Dulce Pandolfi na mesa redonda Eixo Político do congresso Centenário Nise da Silveira. Rio de Janeiro, UERJ, 23 de setembro de 2004. A íntegra do depoimento foi doada ao Cpdoc da Fundação Getúlio Vargas.
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Versão resumida do texto apresentado por Dulce Pandolfi na mesa redonda Eixo Político do congresso Centenário Nise da Silveira. Rio de Janeiro, UERJ, 23 de setembro de 2004. A íntegra do depoimento foi doada ao Cpdoc da Fundação Getúlio Vargas.
08 de abril de 2014
Autor: Dulce Pandolfi
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