A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados admitiu -
ou seja, considerou constitucional - um projeto de emenda à Carta que reserva
para candidatos negros entre 20% e 50% das cadeiras da Casa, bem como das 27
Assembleias Legislativas do País e da Câmara Legislativa do Distrito Federal. A
proposta conflita claramente com o princípio democrático da indiferenciação dos
detentores de mandatos parlamentares: eles só se distinguem, aos olhos da
legislação, por seus Estados e partidos.
De autoria do deputado Luiz Alberto, do PT da Bahia, que lidera a Frente Parlamentar Mista pela Igualdade Racial, o projeto pretende, nas suas palavras, "dar um choque de democracia no Legislativo". Ele alega que não basta que as legendas abram mais espaço a candidaturas de pretos e pardos: seria mais difícil para eles levantar recursos que lhes permitam concorrer de igual para igual com os demais competidores - embora representem quase a metade da população.
De fato, apenas 8,4% dos 513 deputados federais eleitos em 2010 são negros ou pardos; nas Assembleias estaduais, a proporção ainda é menor (3,7% dos 1.059 deputados). Mas, seja lá como se explique isso, a composição dos órgãos de representação política no Brasil não obedece, nem teria por que obedecer, a critérios grupais ou corporativos, como se fôssemos, no primeiro caso, uma confederação de etnias e, no segundo, uma versão aggiornata da Itália fascista.
A premissa da "democratização" também poderia servir à abertura de uma via expressa para que o contingente de parlamentares mulheres corresponda ao peso demográfico da população feminina (101,7 milhões em 201 milhões de brasileiros). Mas, ao que se saiba, nenhuma organização feminista defende que o eleitor, depois de escolher nas listas partidárias abertas o seu candidato, ou candidata, a deputado, vote uma segunda vez em um nome de uma lista separada de candidatas, a fim de que ocupem de 1/5 à metade das cadeiras em disputa.
Essa, afinal, é a esdrúxula fórmula apresentada pelo deputado Luiz Alberto, que valeria por cinco legislaturas (20 anos), prorrogáveis por outro tanto, a contar da promulgação da emenda constitucional. Antes de cumprir o rito da dupla votação com quórum qualificado nas duas Casas do Congresso, a proposta terá de ser aprovada numa comissão especial da Câmara, na qual se espera que a maioria atente ao que o texto embute: a racialização da vida política brasileira. O racialismo sustenta que um afrodescendente não é um brasileiro negro, mas um negro brasileiro - a cor, portanto, prevalecendo sobre a nacionalidade.
Trata-se de uma ideologia transplantada dos Estados Unidos. Lá e cá, o opróbrio da escravidão marcou a história, as relações sociais e a mentalidade de sucessivas gerações. Mas há duas distinções gritantes entre os dois países. Uma é que, abolida a servidão, o Brasil jamais conheceu a discriminação racial instituída em lei - fossem quais fossem o grau e a expressão do preconceito de brasileiros brancos em relação aos descendentes de escravos. Já em boa parte dos EUA, os negros continuaram sendo cidadãos de segunda classe, de uma forma ou de outra, até o advento da Lei de Direitos Civis, em 1964.
A segunda e não menos crucial diferença é que a miscigenação criou entre nós uma sociedade em que, graças à concupiscente cultura colonial, a maioria da população tem "um pé na cozinha", como diz de si Fernando Henrique Cardoso. Nos Estados Unidos, em suma, há mais americanos pretos do que pardos; no Brasil, mais pardos do que pretos. Daí ter se desenvolvido entre os afrodescendentes do Norte a discriminação às avessas, em má hora compartilhada aqui por alas do movimento negro e desavisados adeptos do "politicamente correto".
O padrão brasileiro de representação política implora por mudanças que tornem mais efetivo o voto popular, diminuindo a distância entre a vontade do eleitor e a configuração dos corpos eletivos. Mas em nada contribui para isso - ao contrário - a descabida proposta da reserva de vagas para pretos e pardos nas Casas Legislativas do País, a serem preenchidas por uma modalidade de apartheid eleitoral.
03 de novembro de 2013
O Estado de S.Paulo
De autoria do deputado Luiz Alberto, do PT da Bahia, que lidera a Frente Parlamentar Mista pela Igualdade Racial, o projeto pretende, nas suas palavras, "dar um choque de democracia no Legislativo". Ele alega que não basta que as legendas abram mais espaço a candidaturas de pretos e pardos: seria mais difícil para eles levantar recursos que lhes permitam concorrer de igual para igual com os demais competidores - embora representem quase a metade da população.
De fato, apenas 8,4% dos 513 deputados federais eleitos em 2010 são negros ou pardos; nas Assembleias estaduais, a proporção ainda é menor (3,7% dos 1.059 deputados). Mas, seja lá como se explique isso, a composição dos órgãos de representação política no Brasil não obedece, nem teria por que obedecer, a critérios grupais ou corporativos, como se fôssemos, no primeiro caso, uma confederação de etnias e, no segundo, uma versão aggiornata da Itália fascista.
A premissa da "democratização" também poderia servir à abertura de uma via expressa para que o contingente de parlamentares mulheres corresponda ao peso demográfico da população feminina (101,7 milhões em 201 milhões de brasileiros). Mas, ao que se saiba, nenhuma organização feminista defende que o eleitor, depois de escolher nas listas partidárias abertas o seu candidato, ou candidata, a deputado, vote uma segunda vez em um nome de uma lista separada de candidatas, a fim de que ocupem de 1/5 à metade das cadeiras em disputa.
Essa, afinal, é a esdrúxula fórmula apresentada pelo deputado Luiz Alberto, que valeria por cinco legislaturas (20 anos), prorrogáveis por outro tanto, a contar da promulgação da emenda constitucional. Antes de cumprir o rito da dupla votação com quórum qualificado nas duas Casas do Congresso, a proposta terá de ser aprovada numa comissão especial da Câmara, na qual se espera que a maioria atente ao que o texto embute: a racialização da vida política brasileira. O racialismo sustenta que um afrodescendente não é um brasileiro negro, mas um negro brasileiro - a cor, portanto, prevalecendo sobre a nacionalidade.
Trata-se de uma ideologia transplantada dos Estados Unidos. Lá e cá, o opróbrio da escravidão marcou a história, as relações sociais e a mentalidade de sucessivas gerações. Mas há duas distinções gritantes entre os dois países. Uma é que, abolida a servidão, o Brasil jamais conheceu a discriminação racial instituída em lei - fossem quais fossem o grau e a expressão do preconceito de brasileiros brancos em relação aos descendentes de escravos. Já em boa parte dos EUA, os negros continuaram sendo cidadãos de segunda classe, de uma forma ou de outra, até o advento da Lei de Direitos Civis, em 1964.
A segunda e não menos crucial diferença é que a miscigenação criou entre nós uma sociedade em que, graças à concupiscente cultura colonial, a maioria da população tem "um pé na cozinha", como diz de si Fernando Henrique Cardoso. Nos Estados Unidos, em suma, há mais americanos pretos do que pardos; no Brasil, mais pardos do que pretos. Daí ter se desenvolvido entre os afrodescendentes do Norte a discriminação às avessas, em má hora compartilhada aqui por alas do movimento negro e desavisados adeptos do "politicamente correto".
O padrão brasileiro de representação política implora por mudanças que tornem mais efetivo o voto popular, diminuindo a distância entre a vontade do eleitor e a configuração dos corpos eletivos. Mas em nada contribui para isso - ao contrário - a descabida proposta da reserva de vagas para pretos e pardos nas Casas Legislativas do País, a serem preenchidas por uma modalidade de apartheid eleitoral.
03 de novembro de 2013
O Estado de S.Paulo
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