É de morrer de pena assistir ao debate sobre “democracia” e “estado de direito” no Brasil.
Na quinta-feira passada, 28, o Tribunal Superior Eleitoral cassou os votos de 427.749 eleitores brasileiros no deputado estadual mais votado da história do Paraná, Fernando Franceschini (PSL), por “propagação de informações falsas sobre a urna eletrônica”. É mais um violento passo na escalada da “ditadura preventiva” que o STF, com aval de todos os analfabetos em democracia do Brasil, pôs em prática a pretexto de fazer frente à suposta ameaça verbal de “dar um golpe” de Jair Bolsonaro, o presidente que foi militar mais de 30 anos atrás.
Antes deste os 11 monocratas já tinham mandado para a cadeia, onde continuam presos ha meses sem julgamento ou acusação formal, um deputado federal em pleno exercício do mandato e o ex-presidente de um partido político, dois ou três jornalistas, um dos quais pediu asilo político nos Estados Unidos de quem exigem sua extradição, além de um bêbado que ousou “falar mal” de sua excelsa excelência Alexandre de Moraes numa mesa de bar.
Examinam agora, depois de ter solto o ex-presidente condenado à prisão por corrupção por 9 juizes diferentes, pedido de cassação e/ou prisão de 6 outros deputados eleitos em pleno mandato assim como a expulsão de todas as redes sociais do presidente em exercício da republica, na esteira de sabe-se lá quantos outros cidadãos arbitrariamente já censurados também por crimes de opinião agora rebatizados de “propagação de fake news”, figura que não consta de nenhum código brasileiro.
Não descarto a indignação que tudo isso me causa porque ha evidente dolo nessas ações ilegais e, portanto, elas sim antidemocráticas. Os agentes executores dessa conspiração a céu aberto indubitavelmente sabem o que estão fazendo e no interesse de quem. Mesmo assim o sentimento de pena cada vez mais se sobrepõe a essa indignação quando examino a algazarra dos analfabetos em democracia de variados níveis de escolaridade em torno desses acontecimentos porque, na maioria das vezes, as suas razões são sinceras pois o seu analfabetismo político não traduz falta de cultura, ao contrário, foi cuidadosamente cultivado e instilado em suas cabeças mais ou menos à revelia deles.
Ontem, 2 de novembro, houve a primeira das eleições de midterm (a meio do mandato presidencial) da temporada na democracia americana. Foram eleitos dois governadores, os prefeitos de 27 das 50 capitais estaduais (cada estado e cidade decide a data das suas eleições) alem de centenas de outros país afora e até alguns deputados federais de distritos vagos por morte ou renuncia de seus titulares que podem virar, caso da Virgínia, o controle do Congresso que os democratas mantêm por margem estreita.
24 alterações de constituições estaduais de 6 estados, junto com outras 156 ballot mesures (questões a serem decididas no voto) municipais (contadas apenas as 100 maiores cidades do país), tomaram carona nas cédulas da eleição de ontem. Quatro eram de iniciativa popular, três eram advisory questions sobre impostos (votações que definem orientações dos eleitores para os legisladores), uma era um bond issue (aprovação ou não de constituição de dívida publica para uma obra ou compra de bem público fora do orçamento beneficiando um grupo determinado de eleitores) e as outras 16 eram legislative referred constitucional amendments, ou seja, sugestões de leis feitas pelos legislativos estaduais para aprovação ou não dos eleitores afetados.
Centenas de outras ballot measures em cidades menores estavam nessas mesmas cédulas, dirigidas apenas a parcelas específicas do eleitorado identificáveis pelo endereço que amarra claramente cada eleitor a um único distrito eleitoral municipal, estadual ou nacional. Cada candidato a cada cargo - e lá inúmeros funcionários aqui nomeados são diretamente eleitos - só pode se oferecer a um único distrito e, conforme a eleição, tem de ser obrigatoriamente um morador desse mesmo distrito. Assim todo mundo sabe exatamente quem elegeu quem.
A menor unidade desse sistema de eleição distrital pura é o bairro. Ele se manifesta na eleição para o school board, o conselho de 7 pais de alunos eleitos a cada quatro anos - 4 num quatriênio, 3 dois anos depois para que os quatriênios não coincidam - para cuidar da escola pública do seu bairro. São eles que contratam e aprovam ou não os orçamentos e os atos dos diretores dessas escolas, e podem sofrer recall a qualquer momento.
64 special elections já foram marcadas em 21 estados neste ano, e 44 delas já transcorreram. Essas votações elegem ou deselegem servidores públicos diversos, prefeitos, promotores públicos, juizes comuns e juizes das supremas cortes estaduais, alteram impostos e criam ou anulam leis sobre eleições municipais, compras de bens públicos, despesas fora do orçamento, reorganização de forças policiais, impostos, salário mínimo local, uso de maconha, casamento gay, medidas de combate a pandemias, questões urbanísticas, política penal, etc.
Tudo, na democracia, é decidido, ou por ballot measures inseridas nas cédulas de eleições recorrentes do calendário, ou por essas special elections que podem ser convocadas a qualquer momento por qualquer cidadão em qualquer distrito eleitoral mediante a coleta de assinaturas, razão pela qual o voto lá SEMPRE envolve uma cédula que é ASSINADA DE PRÓPRIO PUNHO por cada eleitor, tornando-se, essa assinatura, a sua chave pessoal e intransferível para o exercício da sua cidadania. Não tem tapeação nem “intérpretes da vontade popular”. Dos municípios em diante, todos os governos contam com um Secretário de Estado, funcionário encarregado exclusivamente de organizar essas votações e validar as petições dos cidadãos para convocá-las mediante a conferência de assinaturas dos eleitores que querem ou não aderir a cada uma, e decidir as coisas.
Por isso me dá pena do Brasil ver jornalistas jecas, “especialistas” jecas, acadêmicos jecas, juristas jecas, empresários, trabalhadores e lideranças civis jecas entrando na conversa mole desses políticos, juizes e ministros do Supremo que “legislam” sem ter mandato popular para isso e enchem a boca de "ciência", nem sempre sem dolo, para arrotar absurdos de matar de vergonha a respeito da "modernidade" da nossa patética máquina de votar não nas nossas, mas nas escolhas de quem nos come os lombos e nos caga regras sem nos consultar, e as falcatruas todas que ela supostamente “legitima” em nome da “democracia” e do “estado democrático de direito”.
Nenhum deles tem a mais vaga ideia do que seja isso. E os que têm são muito piores que os que não têm.
Com o perdão dos "caipiras" modernos que conheço e põem todos esses urbanóides no bolso, o Jeca de que falo é o personagem de Lobato deliberadamente mantido na ignorância e, no final das contas, voluntariamente casado com ela.
06 de novembro de 2021
vespeiro
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