Permito-me a ousadia de chamá-lo por seu nome, quase mesmo chegando à familiaridade do “Zé”, porque, além de fã, sinto-me adora amiga sua. É, amiga. Porque, depois de 18 dias viajando juntos, penso que estamos nessa condição.
Passamos nós três – meu esposo, você e eu – duas semanas e meia em terras lusitanas. Você foi na mochila, soprando sugestões valiosas por seu livro “Viagem a Portugal”. Como era nossa primeira vez nesse país, terminamos por optar pelas principais cidades das diferentes regiões, tratando porém de buscar nelas mais que os aspectos mais “turísticos”, farejando as pistas e saboreando as delícias de que os viajantes gostam.
Quero lhe contar nossa experiência e, de alguma forma, lhe atualizar sobre algumas questões. Ai, José, você precisa ver como a paisagem mudou ou, no mínimo, como o turismo mudou. Lugares que vocês descreveu como vazios ou carentes de visitantes, agora, andam lotados. Outros, que sofriam de má conservação, tiveram reparos, suportes. Isso é bonito de ver, mas transforma completamente a experiência.
Você começou sua jornada cruzando um rio. Nós chegamos de avião, mas preciso iniciar esse relato falando também de água. Como são lindos os rios de Portugal: Tejo, Minho, Douro e Mondego estiveram cruzando o nosso caminho todo o tempo e nos brindando lindas imagens. E água que vinha do céu! Chuva miúda e graúda. Ambas com generosidade. Nossas fotos foram ficando molhadas e nossos trajes de festas de fim de ano acabaram escondidos debaixo das jaquetas impermeáveis. As viagens de trem de um lado a outro ficaram ainda mais românticas com as gotas d’água escorrendo pelos vidros.
Em Braga, quase sem querer, ficamos hospedados em posição estratégica, a meio caminho para todos os lugares importantes e também para os meios de transporte. Mais curioso, nosso alojamento ficava sobre uma sorveteria (Sabores Gelados), que nos fez logo perceber que os portugueses do Norte compartilham com os espanhóis o hábito de ir pra rua tarde da noite. Estranhamos, ao chegar por volta das 20h, encontrar uma cidade quase vazia e, poucas horas depois, lá estavam as ruas cheias e a sorveteria, logo abaixo, repleta de gente.
Essa estada marcou outro elemento recorrente de nossa viagem: as experiências com banheiros. No alojamento de Braga, havia banheiro no quarto, mas nenhuma porta entre uma coisa e outra. Quase o mesmo aconteceu no segundo alojamento em Lisboa, onde a porta do banheiro era praticamente um biombo. Dá pra brincar com ideias criativas, mas o fato é que esses banheiros são um verdadeiro desafio para a intimidade de um casal. Não sabemos muito de seus alojamentos, José, e tenho pra mim que essas composições econômicas são um fenômeno mais recente, em que se tenta conciliar a simplicidade (e a economia) das agradáveis pensões com o “luxo” de ter um banheiro privativo. Mas te conto que ficamos contentes com a acolhida geralmente generosa e simpática dos portugueses, sempre dispostos a dar uma informação, ajudar com o mais necessário e, claro, comentar alguma coisa do que sabem do Brasil.
Mas, voltemos a Braga. Sua Catedral realmente reina absoluta entre o que há de mais interessante para ver na cidade. À parte do que você já descreveu bem no livro e do organizadíssimo museu anexo, onde vimos a Cruz do Descobrimento usada na primeira Missa no Brasil, nos chamou a atenção a quase onipresença de Dom Diogo de Sousa. O tal arcebispo não economizou seus poderes para deixar marcas sobre a arquitetura e sobre como se lê a história, incluindo nisso uma revisão completa da posição de todas as tumbas que estão nessa igreja. Em um dado momento, ao chegar a um novo espaço da Catedral, nossa curiosidade era descobrir que intervenção Diogo havia feito ali. Teria sido essa sua intenção? E, de fato, tanto em Braga quanto em outras cidades, volta e meia, alguma explicação que nos davam trazia seu nome à tona outra vez.
Mais recorrente que ele, talvez, só Dom Manuel e seu estilo manuelino. As cordas – que nos ensinaram que são seu elemento identificador – estavam por toda parte, algumas vezes de maneira escandalosa, como no órgão da Catedral de Braga, outras vezes de forma discreta, como em algumas janelas de Évora.
Igreja também não faltou no percurso. Em Braga, chegávamos a confundir as referências sobre quais já tínhamos visto. E uma das mais lindas visitadas estava mesmo nas redondezas da cidade. Trata-se da Igreja de São Frutuoso de Montélios, que você tanto reverenciou em seu livro, José. E que boa dica! Não fosse apenas a beleza de visitar uma capela do século 7, com seu românico forte, que diz mais do que muitas paredes engolidas pelo barroco, a visita valeu pela experiência.
Tomamos um ônibus de Braga a Dume, uma linha regular. O motorista nos deixou em outra igreja, barroca, bonita, em meio a várias casinhas coloridas com roupas estendidas pelas janelas. Mas cadê o dito românico? Pergunta aqui e ali e a caminhada até o destino parecia longa e confusa. Teve quem riu de nossa rota ao explicá-la, incrédulo de que íamos cumpri-la. Arriscamos assim mesmo. Da beira de uma estrada, vislumbramos terrenos de plantações e muito barro. Era o que nos aguardava. Cruzamos tudo e, ao vislumbrar a cúpula de uma igreja, só víamos um muro infinito ao seu redor. Como entrar? A professora de uma escola-granja, vizinha ao templo, explicou. E, depois de ladear esse muro escuro qual lagartixas em busca do sol, lá estava ela. Porém, fechada. Chamamos um telefone que estava anunciado na porta. O Sr. Carvalho, gentilmente, veio em cinco minutos e, mais que abrir a igreja, nos contou sua história, a de São Frutuoso e a do trabalho da comunidade que está cuidando de todo esse patrimônio.
Ele também nos contou que a igreja estava aberta à visitação todas as tardes, graças ao revezamento de vizinhos. Coisa que o escritório de turismo local ignorava. O sujeito que nos atendeu, na verdade, tentou nos dissuadir de ir a São Frutuoso. Ainda bem que confiamos em você, José, porque isso nos permitiu uma das aventuras mais saborosas de nossa viagem.
Aliás, os serviços de turismo poderiam se animar um pouco mais. Houve lugar em que parecia que estávamos importunando, tamanha a má vontade do atendente. Em outro, não havia mapa da cidade. Mas, tudo bem. Como você diz, José, viajante tem por vocação descobrir e, para isso, às vezes, as fontes informais são as mais interessantes.
Pelas redondezas de Braga, fomos também a Guimarães. Além de você, outros também nos haviam dito: é preciso ir a essa cidade para conhecer as origens da Lusitânia. Aí fomos. Uma hora de ônibus, um meio de transporte interessante para imiscuir-se mais que na cultura, no calor da vida e da opinião local. E olha que a temperatura das conversas sobre rápido. Uma senhora sobe ao ônibus e logo identifica duas conhecidas, mais ou menos da mesma idade, por volta dos 60 anos. A conversa arranca com uma trivial atualização sobre a saúde dessas mulheres e, logo, vai parar nas políticas de saúde do país – a dita cuja da austeridade que, segundo elas, eliminou serviços do bairro e aumentou a distância e o tempo de espera pelo atendimento. Coisa que nós, brasileiros, conhecemos bem. Uma diz que não aceita esse recorte. O tom de voz já mais alto. E o debate passa às opções eleitorais. No calor do julgamento sobre a responsabilidade dos políticos e a futura decisão de voto, o motorista decide também opinar. Ele grita, lá da frente. As senhoras se exaltam. Parece que vão brigar. Uma opinião aqui, outra ali e chega o destino de uma das senhoras. Ela dá beijinhos nas conhecidas e, antes de descer, dá adeus ao motorista. Fim de papo. Se Guimarães nos brindaria com um banho na história de Portugal, nada mais justo que, a caminho, imergíssemos nos sentimentos portugueses daquele dezembro de 2012.
E, volta vai, volta vem, em uma rota pra lá de bonita em meio a uma serra, chegamos ao berço de Portugal. No serviço de turismo local, essa foi a primeira demanda: qual o melhor lugar para saber dessa história? Depois de ouvir da atendente que Guimarães é o lugar onde Afonso Henriques matou a própria mãe para libertar o território português do domínio espanhol, lá fomos nós ao Castelo onde o episódio teria se passado. Não demorou muito para que o argentino ao meu lado desembainhasse sua espada para provocar: “quer dizer que a nação portuguesa – e, logo, a fonte da colonização brasileira, nas entrelinhas – começou com um matricídio?”. E o Castelo de Guimarães, como você conta em seu livro, José, pouco ajudou a responder as especulações sobre como isso teria acontecido, apesar de estar muito bem conservado e nos presentear com uma linda vista da cidade.
Mais tarde, soubemos que a história do matricídio é uma das hipóteses. Para livrar o Condado de Portucale do domínio espanhol e fundar as bases do Reino de Portugal, Afonso Henriques lutou com a mãe a Batalha de São Mamede, pois a matriarca havia se unido a um nobre galego e colocava em risco a soberania lusitana. O rebento venceu e duas teorias se impuseram: em uma , a mãe teria sido encarcerada em uma torre do castelo , onde morreria anos mais tarde; em outra, teria fugido à Galícia com o parceiro de guerra, sem nunca mais dar notícias. O fato é que Afonso Henriques entrou pra história, Portugal virou reinado e, além do Castelo, vale a pena visitar a capela que está logo ao lado, onde o primeiro rei português foi batizado. Embora você não a mencione em tua lista dos românicos, José, esse monumento está bem interessante.
E muito mais história havia pra ver em Guimarães.
Caminhamos pela Rua de Santa Maria, que dizem ser a mais antiga de Portugal. Ligava o Castelo, na parte alta, à zona murada da cidade, mais baixa. Decidimos nos “perder” pelas vielas e fomos descobrindo praças, ruas, fachadas com roupas penduradas e muita arte na rua. Aliás, nos impressionaram os grafites em Portugal, pela variedade, pela quantidade e pela qualidade. E andamos “sem rumo” até decidir que precisávamos repor energias. Então, pedimos ajuda para encontrar uma tal Adega dos Caquinhos, que está bem escondida em um beco perto da Praça da Oliveira. Os ditos caquinhos estão por toda parte, decorando sobretudo as paredes, junto com um Santo Antônio, cuja imagem, acho que não exagero, estava em todos os lugares por onde passamos. Além dos caquinhos – que são pedaços de azulejos e cerâmicas fazendo do lugar todo um grande mosaico –, boa comida e um bom vinho da casa, algo que também desfrutamos por todos os lados em Portugal. Bendito o sujeito que nos disse, logo no primeiro dia de viagem: procurem os restaurantes mais baratos, porque a comida portuguesa é boa por todos os lados. E é mesmo. Boa e farta. Nos esbaldamos em bacalhaus, sardinhas e outros peixes, vitelas, cabrito e vários acompanhamentos saborosos. Além das deliciosas sobremesas. E os lugares mais baratos, além de aliviar o orçamento da viagem, sempre nos presenteavam com a possibilidade de bisbilhotar a rotina das pessoas comuns, trabalhadores, estudantes, famílias, maldizendo as políticas locais e europeias do momento, e revelando a vida de quem ali vive.
Para completar o dia, não deixaríamos de ver outra joia destacada em seu livro, o Museu Alberto Sampaio. Tua citação, dizendo que se trata do melhor acervo que você viu na sua rota, está estampada à porta, convidando os que passam por ali sem a tua companhia, a fazer a visita. O claustro é realmente fantástico. Daria para passar umas boas horas por ali, descobrindo detalhes em cada capitel daquelas colunas. Avançando pelos salas internas, quanta coisa interessante. E tivemos a sorte de sermos orientados por uma das guias do museu, que elucidou a história por detrás de várias das obras que vimos. Nos contou também que a oliveira que dá nome à praça teria sido protagonista de um milagre, mas também de uma ação furtiva, em que um administrador local, para trocar a árvore original, já morta, teve que trabalhar na calada da noite, para colocar ali outra planta. Particularmente, fiquei namorando as esculturas da Virgem e de vários santos, talhadas em distintas épocas.
E, dali, uma última volta pela cidade, com uma sensação de que seria um bom lugar pra ficar um tempo mais. De volta o ônibus a Braga. De volta, o caminho do alojamento para a estação de trem. Mas, como não podia ser assim, sem história, chovia e um bêbado moldávio nos parou no caminho. Queria conversar, ainda que a chuva molhasse e nossa situação – sem sombrinha e com malas – não fosse a mais indicada. Não sossegou enquanto não me deu uma flor. Aceitei para encurtar a prosa, mas ela acabou mesmo ficando na porta medieval da cidade, como agradecimento nosso pelos bons momentos vividos por ali.
02 de setembro de 2019
in Filosofia de botequim
in Filosofia de botequim
Nenhum comentário:
Postar um comentário