“Eu vou estar te contando a penúltima parte da viagem que estivemos fazendo em Portugal.”
“A gente ia andando, passeando, conversando, enquanto ia vendo os lugares novos, falando com as pessoas e provando a culinária local.”
“A gente ia andando, passeando, conversando, enquanto ia vendo os lugares novos, falando com as pessoas e provando a culinária local.”
Estou te incomodando porque estou usando muito gerúndio?
Se você quer reclamar, vá para Évora!
Se você quer reclamar, vá para Évora!
José, que descoberta!
Nossa guia nessa cidade nos revelou – entre outras coisas que fizeram Évora parecer o centro do universo – que a gente de Évora é reconhecida em Portugal por causa do gerúndio. Segundo ela, o gerúndio está para os de Évora assim como o ssschssshch está para os cariocas e o leite quente está para os paranaenses. Quer dizer, ali está a pátria amada dos operadores de telemarketing, dos atendentes de serviços prestados por telefone, de boa parte dos recepcionistas e vendedores.
Eu, realmente, não lembro de ter ouvido falar disso antes, mas ela explicou que a herança do gerúndio foi transmitida ao Brasil porque muitos habitantes de Évora tomaram parte das expedições durante a colonização. E, ainda no campo dos descobrimentos, essa guia também reivindicou a nacionalidade de Cristóvão Colombo. Ele teria nascido na região de Évora, perto de Cuba, e dali teria sido enviado à Espanha para espionar e atrapalhar as incursões espanholas nas Índias. Dessa versão, podemos concluir que a “descoberta” da América teria sido o resultado de uma tentativa portuguesa de levar os espanhóis para o lugar errado!
Essa visita guiada também foi um tipo de acidente de percurso positivo na nossa viagem. Chegamos ao serviço de turismo e uma família portuguesa aguardava a guia que lhes conduziria em um tour. Como esse grupo atrasou, nós pudemos nos juntar a ele para percorrer a cidade, novamente debaixo de uma garoa incansável – que, certamente, era muito mais tolerável do que os adolescentes absolutamente desinteressados e a mãe atendendo seu celular ou querendo parar a caminhada porque a chuva ia desfazer seu penteado. Afe! À parte disso, no trajeto, janelas e portas manuelinas por todos os lados. Mas o que mais gostamos foi descobrir os vestígios de arcos romanos que compunham o antigo aqueduto que abastecia Évora. Com a guia, aprendemos a identificá-lo. Mais tarde, continuamos a buscá-lo por outros lugares da cidade.
Nessas idas e vindas, também acidentalmente, nos encontramos com um artesão local, o senhor Isidro Manuel Verdasca, que, aos 90 anos, demonstra uma série impressionante de talentos artísticos. Por exemplo, ele nos deu uma palhinha de uma peça musical tocada em vários recipientes com água, que ele tinha dispostos em sua garagem-atelier-loja. Mas seu dom mais precioso é o de contar a história do Alentejo por meio de esculturas de cortiça.
Ele nos ensinou um montão sobre o cultivo dessa árvore e suas utilizações – junto com o mármore, a cortiça é um dos principais produtos da economia local. O senhor Isidro esculpe quase todas as etapas do ciclo de cultivo e extração da cortiça e, além de mostrar várias lindas peças, nos contou as peculiaridades desse ofício, sempre destacando que suas obras retratam “como as coisas eram feitas nas época antigas”. Depois disso, foi lindo rever as extensas plantações, nos arredores de Évora, com árvores numeradas para indicar o ano da última extração. Parecia que havíamos sido introduzidos a um segredo compartilhado só por seres especiais que sabem “ler as árvores”.
Na Catedral, gostamos muito da imagem da Nossa Senhora do Ó, deslumbrante e serena em sua gravidez plena, perto da boa hora. Como ela estava em todos os lugares por onde passamos em Portugal, sua presença reaparecia nas conversas com guias de turismo, de museu ou mesmo com moradores com quem falávamos. Ouvimos variadas histórias: o nome dela é Senhora do Ó porque as pessoas se impressionavam ao ver a Virgem grávida = ooooohhhhh. Ou: ela se chama assim por causa dos gemidos decorrentes das dores do parto, que está por vir. E por aí vai. O discurso recorrente é que se trata de uma representação criada para aproximar a Virgem Maria das pessoas, mostrando sua condição de mãe perto da hora do parto, e que, por isso mesmo, foi também destruída ou escondida durante tempos em que se considerou ofensivo expor a mãe de Jesus em uma condição tão… humana. Atualmente, ela anda bem aparente, em muitas igrejas e museus, junto com a Virgem do Leite, em que Maria dá o peito ao bebê Jesus. E muitas dessas imagens são realmente muito bonitas, como essa da Catedral de Évora.
Ali, o claustro também é um lugar interessante e gostamos, especialmente, de subir no teto da igreja. Literalmente. É possível caminhar sobre a nave principal da Catedral de Évora. E, nesse dia, tivemos uma bela janela de sol que nos permitiu apreciar toda a cidade e seus arredores, além das cores fantásticas dos musgos que parecem compor, intencionalmente, a decoração das torres.
É verdade que gostamos menos de Évora do que você, José. Talvez, nossa expectativa estivesse muito alta: você a apresentou com letras apaixonadas, outra amiga recomendou esse destino com veemência. Ao final, vimos uma cidade realmente charmosa, metida entre muros, com ruas estreitas e suas simpáticas casas de paredes muito brancas. Não sei se foi a coincidência da chuva com as vésperas de Ano Novo, que fizeram tudo parecer menos intenso, o fato é que o que mais gostamos desse trecho da viagem veio mesmo das coisas inesperadas que apareceram pelo caminho.
Ainda na Catedral, tivemos mais uma dessas boas surpresas. Um coro de vozes masculinas, o Grupo Coral e Etnográfico da Casa do Povo de Serpa, que apresentou meia dúzia de canções que foram suficientes para se fixar em nossa memória para sempre. Sua denominação etnográfica está nos trajes que vestem os coristas: pastores, agricultores, feitor, cavaleiros d’ontonte. Gente do campo cantando cantos tradicionais de Natal. E que vozes! Foi uma linda experiência.
E também presenciamos e desfrutamos da grande fogueira na Praça do Giraldo. Essa não é tradição antiga, mas quer se estabelecer. A mesma guia nos contou que, desde que a crise econômica começou a impor cortes nas contas públicas, a administração local cortou a decoração de Natal. Nada de árvores, presépios e edifícios ou ruas iluminados. A população decidiu que não seria assim; o Natal não passaria em branco e, desde então, arma-se a fogueira na praça.
Houve quem nos disse que o fogo é permanente, que os moradores se revezam para abastecer as chamas durante 30 dias. Não madrugamos para conferir, porque o frio não era animador. Mas, sempre que passamos por ali, havia fogo – mesmo debaixo de chuva – e gente ao redor, incluindo um graveto, aquecendo-se e emendando prosas. Nessa hora, desejamos que a crise passe, para as pessoas viverem bem. Porém, também fizemos um voto de que o hábito de acender o fogo e se reunir na praça permaneça.
02 de setembro de 2019
Filosofia de botequim
02 de setembro de 2019
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