Nunca aconteceu em nenhuma democracia do mundo, em nenhuma época, um caso de político que tenha sido preso por fazer política. Alguém sabe de algum parlamentar da Inglaterra, por exemplo, punido por fazer um discurso contra o governo? Ou de um deputado da França, Estados Unidos ou Alemanha cassado por desfilar numa passeata, fazer um comício ou organizar uma reunião com militantes do seu partido? Ou por brigar com uma autoridade qualquer?
É claro que ninguém jamais ouviu falar de nada disso, nem vai ouvir falar, porque numa democracia a atividade política é livre. Ou seja: nenhum político precisa de “foro privilegiado” ou “imunidade parlamentar” para se proteger de qualquer tipo de perseguição quando está no exercício legítimo dos seus direitos e funções — venha a perseguição do Executivo, do Judiciário ou de onde vier.
Ao mesmo tempo, segundo a lógica mais simples, vai ser processado como todos os demais cidadãos se roubar o cofre do governo ou der um tiro na cabeça do vizinho.
Crime político? Não existe “crime político” em nenhum regime democrático deste planeta.
Crime político? Não existe “crime político” em nenhum regime democrático deste planeta.
O que existe é crime mesmo, previsto no Código Penal, e quando alguém comete um crime tem de responder por ele na Justiça comum. Tanto faz se for deputado, governador ou astronauta. Se é acusado de um ato criminoso, que arrume um advogado e vá se defender. Se não fez nada proibido nas leis penais, não precisa de imunidade nenhuma. Qualquer zé-mané entende isso em dois minutos. Só não entendem os políticos, magistrados e intelectuais que raciocinam em bloco e aparecem na mídia ensinando como funciona o mundo. Na verdade, não querem entender. O que eles querem, isto sim, é impedir que os homens públicos corram o risco de ir para a cadeia — e não apenas por corrupção, como é normal esperar de um indivíduo que entra na vida política brasileira, mas por qualquer crime já concebido e praticado pelo ser humano desde que Caim matou Abel.
Não existe “crime político” em nenhum regime democrático deste planeta
Se você estiver achando que há algo errado com essa comédia degenerada, espere pelo segundo ato. O “foro privilegiado” não se limita aos políticos: neste preciso momento, protege 55 000 pessoas em todo o Brasil. É impossível pensar num país sério no qual existam 55 000 sujeitos que têm uma licença virtual de cometer crimes — pois o “foro privilegiado”, na vida real, torna praticamente impunes os criminosos que contam com esse privilégio, como diz o próprio nome da tramoia. É por isso, exatamente, que o Brasil não tem a menor chance de ser confundido com um país sério. Entram nesse cardume prodigioso, além do presidente da República e do vice, todos os ministros de Estado, os comandantes das três armas e os governadores. Junte aí deputado federal, senador, prefeito, mais a ministrada dos “tribunais superiores”: o STF, o STJ, o militar, o eleitoral e até o do “trabalho”. Também estão a salvo os conselheiros dos tribunais de contas, os procuradores federais e estaduais, os desembargadores e juízes federais, os desembargadores e juízes estaduais — enfim, é um milagre que não tenham enfiado aí os juízes de futebol e os bandeirinhas.
Quem poderia acabar com essa aberração? A última tentativa foi feita, ao que parece, no STF. Mas não foi. No mundo das coisas práticas, mais uma vez, houve muita falação, muita data venia e muita cara séria fazendo discurso sobre o “Estado de direito” — mas ação mesmo, que é bom, nada. Como sempre, ficaram ciscando durante horas a fio numa língua que poderia ser o servo-croata (pior: se fosse em servo-croata um cidadão da Sérvia ou da Croácia, pelo menos, iria entender alguma coisa), e no fim acabaram não indo nem para diante, nem para trás, nem para os lados. Qual é o problema dessa gente? Existem no mundo coisas permitidas e coisas proibidas. As coisas proibidas não podem ser feitas — nenhum cidadão pode cometer estupro, guiar embriagado ou assaltar um banco. Não há exceções. Em lugar nenhum está dito que há dois tipos de estupro, por exemplo — o cometido por um indivíduo comum e o cometido por um dos 55 000 portadores de “foro privilegiado”. Se o senador, o conselheiro de contas ou o “juiz do trabalho” praticarem algum desses crimes, paciência. Vão ter de ser indiciados em inquérito policial, denunciados, julgados e punidos. Fim de conversa.
Não aqui. Aqui as leis são feitas para a conversa não acabar nunca. Os leigos podem não entender isso — mas é preciso preservar os “agentes do Estado” de acusações injustas, não é mesmo? Se não for assim, o Brasil vai acabar virando uma baderna.
17 de maio de 2018
J.R.Guzzo, VEJA
Não existe “crime político” em nenhum regime democrático deste planeta
Se você estiver achando que há algo errado com essa comédia degenerada, espere pelo segundo ato. O “foro privilegiado” não se limita aos políticos: neste preciso momento, protege 55 000 pessoas em todo o Brasil. É impossível pensar num país sério no qual existam 55 000 sujeitos que têm uma licença virtual de cometer crimes — pois o “foro privilegiado”, na vida real, torna praticamente impunes os criminosos que contam com esse privilégio, como diz o próprio nome da tramoia. É por isso, exatamente, que o Brasil não tem a menor chance de ser confundido com um país sério. Entram nesse cardume prodigioso, além do presidente da República e do vice, todos os ministros de Estado, os comandantes das três armas e os governadores. Junte aí deputado federal, senador, prefeito, mais a ministrada dos “tribunais superiores”: o STF, o STJ, o militar, o eleitoral e até o do “trabalho”. Também estão a salvo os conselheiros dos tribunais de contas, os procuradores federais e estaduais, os desembargadores e juízes federais, os desembargadores e juízes estaduais — enfim, é um milagre que não tenham enfiado aí os juízes de futebol e os bandeirinhas.
Quem poderia acabar com essa aberração? A última tentativa foi feita, ao que parece, no STF. Mas não foi. No mundo das coisas práticas, mais uma vez, houve muita falação, muita data venia e muita cara séria fazendo discurso sobre o “Estado de direito” — mas ação mesmo, que é bom, nada. Como sempre, ficaram ciscando durante horas a fio numa língua que poderia ser o servo-croata (pior: se fosse em servo-croata um cidadão da Sérvia ou da Croácia, pelo menos, iria entender alguma coisa), e no fim acabaram não indo nem para diante, nem para trás, nem para os lados. Qual é o problema dessa gente? Existem no mundo coisas permitidas e coisas proibidas. As coisas proibidas não podem ser feitas — nenhum cidadão pode cometer estupro, guiar embriagado ou assaltar um banco. Não há exceções. Em lugar nenhum está dito que há dois tipos de estupro, por exemplo — o cometido por um indivíduo comum e o cometido por um dos 55 000 portadores de “foro privilegiado”. Se o senador, o conselheiro de contas ou o “juiz do trabalho” praticarem algum desses crimes, paciência. Vão ter de ser indiciados em inquérito policial, denunciados, julgados e punidos. Fim de conversa.
Não aqui. Aqui as leis são feitas para a conversa não acabar nunca. Os leigos podem não entender isso — mas é preciso preservar os “agentes do Estado” de acusações injustas, não é mesmo? Se não for assim, o Brasil vai acabar virando uma baderna.
17 de maio de 2018
J.R.Guzzo, VEJA
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