O Ministro Gilmar Mendes tem se notabilizado como o agente da reação a qualquer perspectiva de mudança em certos hábitos que compõe uma bem delineada cultura da impunidade no Brasil. Foi ele o condutor do processo que terminou por absolver Michel Temer no TSE, que preside; que tirou da cadeia a máfia dos ônibus do Rio de Janeiro; e que, em dobradinha com Marco Aurélio Mello, se prepara para ser o motor da alteração uma decisão do STF que impôs o cumprimento de pena após condenação criminal em segunda instância.
Para tanto, precisou mudar de opinião de maneira radical, visto que no passado recente, em casos análogos, havia tomado decisões que se opunham frontalmente ao seu posicionamento mais recente, que vem sendo alvo de questionamentos por vários segmentos da sociedade.
Não é segredo para ninguém que Gilmar Mendes teve vários encontros com Michel Temer e seus defensores antes da sessão do TSE na qual o Presidente da República terminou absolvido. Tampouco que Gilmar contrariou a si mesmo ao mudar de opinião sobre a necessidade de dar andamento ao processo. Em 2015, apenas dois anos antes, ele reverteu decisão da então relatora do mesmo processo, Maria Thereza de Assis Moura, que queria arquivar o caso contra a chapa Dilma – Temer alegando falta de provas.
O PSDB, autor da ação, recorreu da decisão de Maria Thereza. Levado ao plenário, o recurso foi relatado por Gilmar Mendes, que fez um voto duro e assertivo. Considerou então que as revelações da Lava Jato eram “constrangedoras” e fariam “corar um frade de pedra”, o que recomendava a continuidade da ação “em busca da verdade dos fatos”. Essa era a opinião contundente do homem cujo voto de Minerva, dois anos depois, desempataria o julgamento dos mesmos réus, contrariando sua primeira manifestação, em benefício de Temer. A atuação de Gilmar Medes, especialmente sua radical troca de posição, faria corar um frade de pedra. Mas ele não se abalou.
O que mudou entre uma coisa e outra? Mudou o contexto político. Ao tempo de sua primeira tomada de posição, a presidente era Dilma Rousseff. Na segunda, era Michel Temer. Ou seja: Contra o PT, o supremo Gilmar Mendes ira irascível e cruel. Contra o PSDB, dócil e ameno.
Metamorfose ambulante
As mudanças de posição do ministro mais poderoso e pragmático do Judiciário brasileiro não são fato raro em sua história recente. Elas se dão sempre no sentido de uma visão cada vez mais exacerbadamente garantista, em que os direitos de réus amigos vão deformando e redesenhando a doutrina e a jurisprudência nas cortes superiores.
Um dos casos mais recentes e notórios foi o duelo travado pelo superministro com o juiz federal Marcelo Bretas, o homem da Lava Jato no Rio de Janeiro, em torno da libertação da máfia dos transportes. Entre os encarcerados por Marcelo Bretas estava Jacob Barata Filho, conhecido como o Rei do Ônibus fluminense. Ele é acusado de ser um dos cabeças da organização criminosa que conseguia privilégios fiscais e aumentos de tarifa irrigando as contas do ex-governador Sérgio Cabral e de todo o sistema de fiscalização da capital e do município do Rio de Janeiro com propina generosa.
Mas Barata não é um réu qualquer — é o pai de Beatriz Barata, com quem seu sobrinho Francisco Feitosa Filho se casou em 2013. Sim, o noivo era sobrinho de Gilmar Mendes. É filho de Francisco Feitosa, irmão de Guiomar Mendes Feitosa, esposa do ministro Gilmar Mendes. Não foi apenas o laço circunstancial com alguém cujo casamento durou apenas seis meses, como alegou o ministro. Nessa relação, os traços de parentesco são indeléveis.
O Art. 254 do Código de Processo Penal, que fixa os limites da atuação dos magistrados e estabelece os critérios para a decretação da suspeição, poderia ter sido mais do que suficiente para evitar que Gilmar Mendes atuasse em favor de um parente (ou contraparente). É fato que essa cláusula não explicita esse vínculo indireto de parentesco. Mas diz textualmente que “o juiz dar-se-á por suspeito, e, se não o fizer, poderá ser recusado por qualquer das partes (…) se for amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer deles”. Amizade com laços de parentesco reforçada por vínculos de compadrio, no entanto, também não ensejou Gilmar Mendes a resistir à tentação de tirar da cadeia o sogro do sobrinho de sua mulher.
Há, nesse caso, algumas outras circunstâncias que precisam ser observadas. Ao pedir a decretação do impedimento de Gilmar Mendes, o Procurador-Geral da República elenca, entre outros argumentos, o fato de que Guiomar Mendes, a esposa do ministro, é sócia do escritório de advocacia que defende Jacob Barata Filho. A arguição de suspeição está embasada no terceiro inciso do Art. 254 do CPP, que estabelece que se dará por impedido ou poderá ser recusado por qualquer das partes ” [o juiz], seu cônjuge, ou parente, consanguíneo, ou afim, até o terceiro grau, inclusive, [que] sustentar demanda ou responder a processo que tenha de ser julgado por qualquer das partes”.
Pau que bate em Chico, não em Francisco
Para tirar Jacob Barata Filho da cadeia duas vezes em 24 horas Gilmar Mendes se valeu de um triplo carpado hermenêutico para afastar a Súmula 691 do STF. Essa súmula, fixada em setembro de 2003, estabelece que “não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do Relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar”.
Era exatamente o caso de Jacob Barata Filho. Os advogados do Rei do Ônibus já haviam tentado reverter a prisão determinada pelo juiz Marcelo Bretas em todas as instâncias abaixo do STF. A liminar foi negada monocraticamente pelo relator do caso do Tribunal Regional Federal da Segunda Região; pela Primeira Turma do TRF-2; e posteriormente, quando a decisão foi recorrida ao STJ, a relatora Maria Thereza de Assis Moura (sempre ela!) a negou novamente.
A despeito do enquadramento perfeito desse caso na Súmula 691, Gilmar Mendes mandou soltar duas vezes o sogro de seu sobrinho sob o argumento de que outras medidas cautelares previstas pelo Art. 319 do Código de Processo Penal seriam “absolutamente eficazes e adequadas ao caso, inexistindo qualquer razão para a constrição cautelar da liberdade do paciente”.
É preciso lembrar que a liminar foi estendida a vários outros réus da Operação Ponto Final. Um deles é Rogério Onofre, ex-diretor do Departamento de Transportes do Rio de Janeiro (DETRO). Ele foi flagrado ameaçando de morte dois empresários conhecidos como Batman e Robin, que lavavam dinheiro para a quadrilha chefiada pelo sogro do sobrinho do ministro do STF. Ao deliberar sobre este caso, Gilmar Mendes se insurge com fúria contra a Súmula 691 e ataca colegas da corte a quem chama de “covardes” por deixarem de conhecer habeas corpus vedados por ela. Diz Gilmar Mendes que essa cláusula “vem sendo utilizada iterativamente (repetidamente) como valhacouto (esconderijo) de [ministros] covardes para deixar de conhecer casos gravíssimos que chegam pela via do HC”.
Observando-se a jurisprudência do STF, inclusive a que está enumerada no próprio despacho do ministro, nota-se que Moreira Alves, Maurício Corrêa, Celso de Mello e Rosa Weber já fundamentaram votos, que depois foram acolhidos pelo colegiado do STF, afastando a possibilidade de conceder liminar em habeas corpus quando esta já foi negada por relator de outro tribunal superior, conforme a Súmula 691. Seriam eles os “covardes” que se abrigam no “valhacouto” da Súmula 691? Mas aqui, Gilmar Mendes entraria em um paradoxo: ele mesmo, adotando integralmente essa norma, também negou liminar em circunstâncias idênticas no HC 132.185-AgR/S, por ele relatado no ano passado. Estaria, então, entre esses aludidos “covardes”?
Entre idas e vindas na hermenêutica móvel de Gilmar Mendes, pau que bate em Chico só vai bater em Francisco se ele for como o ´paciente´ Marcio Germano Masson, a quem o ministro negou a liberdade em decisão monocrática no ano passado com base na Súmula 691. Ao contrário de Jacob Barata Filho, Masson não tinha amigos na corte, não é sobrinho de ministro do STF nem tem frotas de ônibus. É o dono de uma clínica clandestina de recuperação de drogados que teve o azar de ver um de seus clientes morto. Ao tentar socorrê-lo, foi parado por uma radiopatrulha que, ao constatar que um dos quatro ocupantes de um Gol velho jazia inerte no banco de trás e tinha o corpo frio, decidiu prender Masson por suspeita de homicídio. De nada adiantaram as explicações dos três ocupantes do carro de que eles estavam tentando chegar a um hospital para socorrer o homem. Para esse coitadinho, quando os recursos chegaram ao STF, a sensibilidade e a indignação de Gilmar Mendes não funcionaram.
Sorte e prevenção
Há outro dado que causa estranheza. Sabe-se, pelo que é público nesse caso, que Jacob Barata é um homem de muita sorte por ter encontrado, no caminho de suas súplicas judiciais pela liberdade, justamente o tio do genro. Mas a construção desse caminho passou por pontos transversais — e nem sempre a sorte pareceu sorrir para Jacob Barata Filho. Onze anos atrás, ele teve negado um pedido de liminar pelo mesmo Gilmar Mendes que agora o tirou duas vezes da cadeia. Azar?
Nada disso.
Foi graças a essa negativa, lavrada por Gilmar Mendes como relator de um habeas corpus impetrado contra decisão da Segunda Turma Recursal dos Juizados Especiais Criminais Federais da Seção Judiciária do Estado do Rio de Janeiro, que Jacob Barata Filho começou a trilhar o caminho que o livraria do cárcere 11 anos depois. Naquele momento distante da história, é provável que o ministro e o empresário carioca ainda nem se conhecessem. No STF, Barata perdeu em 2006. Mas essa primeira derrota foi, efetivamente, o que abriu duas vezes seguidas para ele a porta de saída da cadeia em 2017.
Inicialmente, o HC impetrado pelos advogados do Rei do Ônibus neste agosto de 2017 foi sorteado e distribuído para a ministra Rosa Weber às 18h08 do dia 10 de agosto. Era ela, portanto, quem deveria decidir a sorte da Máfia dos Transportes do Rio de Janeiro. Curiosamente, o processo foi redistribuído uma semana depois para o ministro Gilmar Mendes. A causa, segundo o despacho da Coordenadoria de Processamento Inicial do STF, foi o HC141478 — aquele que Gilmar Mendes havia relatado 11 anos atrás, ao qual negou liminar a Barata, e que por esta razão foi imediatamente arquivado.
O Art. 83 do Código de Processo Penal diz que a competência por prevenção ocorre “toda vez que, concorrendo dois ou mais juízes igualmente competentes ou com jurisdição cumulativa, um deles tiver antecedido aos outros na prática de algum ato do processo ou de medida a este relativa, ainda que anterior ao oferecimento da denúncia ou da queixa”. O processo que deu causa à prevenção, no entanto, não guarda nenhum nexo de causa ou conteúdo com o a investigação da Operação Ponto Final. Os dois casos não tratam na mesma matéria, nem os assuntos são correlatos. As únicsa coisas em comum entre o HC de 2016 e o de 2017 são o réu, Jacob Barata Filho, e o juiz, Gilmar Mendes, para a sorte do réu.
O Blog do Pannunzio pediu ao STF que esclareça como foi fixada a prevenção nesse caso, mas ainda não obteve resposta.
Birra de gente presa
À medida em que reforça seu histrionismo contra colegas que divergem dele e especialmente contra o Ministério Público, que não cansa de criticar, Gilmar Mendes vai preparando o terreno para outra mudança de opinião de consequências avassaladoras. Desta vez o alvo é a decisão sumulada pelo STF em outubro do ano passado que determina como momento inicial do cumprimento da pena a condenação em segunda instância. A decisão foi sacramentada por um placar apertado, de seis votos contra 5. Os ministros que votaram a favor foram Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Teori Zavascki, Luiz Fux, a presidente do STF, Cármen Lúcia, e… Gilmar Mendes!
Agora transformado no mais retrógrado e indócil ministro da corte suprema, Gilmar já disse que mudará de opinião assim que o tema voltar ao plenário do STF. Para tanto, ele mesmo criou, dias atrás, um fato concreto quando, contrariando a decisão majoritária da qual compartilhava, mandou soltar um condenado em segunda instância. Embora o propósito não tenha sido declarado, ficou clara a impressão de que ele está tentando forçar a rediscussão do assunto. “Nós admitimos que se permitiria a prisão a partir da decisão de segundo grau. Mas não dissemos que ela fosse obrigatória”, disse o ministro, justificando sua camaleônica coerência.
A perspectiva é vista pelos juízes federais e pelo Ministério Público como um preocupante gesto de afronta aberta às conquistas da Lava jato, que viu o número de delações premiadas aumentar de maneira significativa depois desse novo ordenamento. A chance do prejuízo se materializar não é pequena. Em dobradinha com Mendes, Marco Aurélio Mello, que foi voto vencido, promete pressionar a presidente Carmen Lúcia a recolocar o assunto em discussão. Com a mudança anunciada de Gilmar, o placar se inverterá, restando 6 votos a favor da protelação do cumprimento das penas.
Para quem deseja uma Justiça mais justa, capaz de mitigar o quadro endêmico criado pela corrupção industrial da política, os passos retrógrados de Gilmar Mendes representam a perda da esperança num avanço rápido e consistente. As críticas contra ele se avolumam e vão criando áreas de hostilidade dentro do próprio Supremo Tribunal Federal. Não são poucas as reclamações dos próprios colegas que, cada vez mais amiúde, tentam refrear os impulso da cólera e da obstinação.
Internamente, comenta-se que os desgastes seguidos impostos ao corpo da corte constitucional estão levando ao limite da paciência gente como Cármen Lúcia e Barroso. A ministra-presidente estaria disposta, a despeito do risco de ser derrotada, a levar a plenário a discussão do pedido de impedimento formulado pela Procuradoria Geral da República contra o mais político dos juízes supremos.
Poucos acreditam que o corporativismo incrustado na Casa permitiria que a maioria dos colegas o declarasse suspeito para atuar em benefício do sogro de seu sobrinho. Mas a simples discussão do assunto em plenário já seria, por si só, uma desonra para o ministro.
22 de setembro de 2017
Fábio Pannunzio
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