HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA
Agência Café História
Na noite da última quinta-feira (6), dois navios de guerra americanos estacionados no Mediterrâneo lançaram 59 mísseis Tomahawk contra uma base aérea do regime do presidente sírio, Bashar al-Assad. O disparo ocorreu dois dias após um ataque com armas químicas deixar ao menos 70 mortos e mais de 100 feridos na província de Idlib, norte da Síria, onde se concentram tropas contrárias ao governo Sírio. O presidente da Rússia, Vladimir Putin, principal aliado de Assad, classificou o bombardeio americano como uma “agressão contra um Estado soberano”. Neste sábado (8), seu governo enviou uma fragata para o Mediterrâneo.
Na imprensa internacional, o ataque americano causou algum estranhamento. O presidente americano Donald Trump vinha se mostrando até então contrário ao envolvimento direto dos Estados Unidos no conflito. Em 2013, quando ainda não era presidente, Trump escreveu em sua conta no Twitter: “Presidente Obama, não ataque a Síria. Não há nada a ganhar, só a perder”. Durante a campanha presidencial, no ano passado, Trump declarou-se mais uma vez contra o envolvimento do país na guerra dizendo que os Estados Unidos não deveriam se livrar de ditaduras porque as “intervenções só
criavam confusão.
Para entender melhor o ataque americano e o conflito que vem ocorrendo na Síria nos últimos seis anos, o Café História conversou com especialistas de diversas áreas. A ideia é iluminar o principal conflito bélico da atualidade. Em 2016, o jornal britânico “The Guardian” divulgou dados do Centro Sírio para Pesquisa Política que apontavam a morte de 400 mil sírios no conflito e de outras 70 mil mortes devido à falta de água e cuidados médicos. O número de feridos chega a 1,9 milhão de pessoas. Uma crise humanitária sem precedentes assola a região, com destaque para o drama dos refugiados. Milhões de pessoas já deixaram ou tentam deixar o território sírio. No Brasil, segundo dados do Comitê Nacional para os Refugiados, 1/4 dos refugiados no país são de Sírios.
A origem do conflito e seu desenvolvimento
“O início dos conflitos na Síria está marcado por diferentes fatores condicionados às características do sistema regional do Oriente Médio”. A avaliação é do professor de história contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Murilo Sebe Bon Meihy. Segundo explicou ao Café História, desde anos 1990, muitos países da região vêm vivendo uma grande pressão interna por mudanças sociais. Na Síria, no entanto, a abertura se deu apenas no campo da economia, a partir da adoção de algumas medidas liberais. No campo político, a repressão apenas aumentou. Segundo explica Meihy, ao longo dos anos 2000 essa escolha de abertura parcial mostrou-se um equívoco:
O resultado dessa tímida reforma foi a instabilidade social, principalmente da classe média, o aumento da pobreza, e a concentração de poderes econômicos e até mesmo militares nas mãos de uma elite ligada ao regime da família al-Assad. Não por acaso, os conflitos na Síria, bem como em outros países do Oriente Médio como a Tunísia, a Líbia, o Egito e o Iêmen são antecedidos por um período de aumento das commodities de alimentos. Outras questões como o desemprego entre os jovens, a corrupção política, e a falta de perspectivas reais de mudança acirraram os ânimos entre esses regimes e a sociedade civil. No caso da Síria, o aparelhamento das forças de segurança empreendido por Bashar al-Assad a partir de sua ascensão ao poder em 2000, permitiu que parte considerável do exército nacional se mantivesse leal ao regime, o que não aconteceu com Kadafi, Ben Ali, Mubarak, e Abdullah Saleh. A resistência aos rebeldes conquistada por Bashar al –Assad nos primeiros dois anos do conflito fez com que a Síria se transformasse em um palco de disputas entre lideranças regionais como Irã, Turquia, Arábia Saudita, e os países petrolíferos do Golfo Pérsico. A partir dessa contenda regional, o ativismo político islâmico passou a se organizar dentro da Síria com o apoio financeiro de alguns dos países citados. Nesse contexto, o caos do conflito iraquiano, vigente desde 2003, torna a fronteira com a Síria um lugar poroso capaz de integrar forças paramilitares de ambos os cenários. Em meio a esse vazio, grupos do ativismo político islâmico como a Frente al-Nusra e o chamado Estado Islâmico conquistam espaço no conflito, operando simultaneamente nos dois conflitos.
Ainda segundo o professor do Instituto de História da UFRJ, esse cenário bastante confuso foi visto pela Rússia como uma oportunidade única de aumentar a sua influência na região, como nos tempos da União Soviética, ao mesmo tempo que outros atores internacionais, como os Estados Unidos e a União Europeia, permaneceram distantes do país.
Para isso, Putin reeditou a velha simpatia soviética pela Síria, traduzida em anos anteriores na manutenção da base militar russa de Tartus, desde os anos 1970, além da recém construída base aérea de Khmeimim, que garantem acesso de Moscou ao Mediterrâneo. A troca entre Síria e Rússia é clara. A sobrevivência do regime de Bashar al-Assad depende do apoio russo; em barganha, a Rússia volta a ser um ator determinante em uma região estratégica como o Oriente Médio.
Meihy destaca também que, no fim das contas, todos os envolvidos no conflito acabam retirando da população civil da Síria “o protagonismo sobre o seu próprio destino”.
A crise dos refugiados é o seu reflexo mais contundente. E a disputa por uma área estratégica como a região de Idlib, alvo recente de um ataque com armas químicas, redireciona os olhares dos Estados Unidos para a crise síria. Mais uma vez, o povo sírio vive sua agonia, assistida como uma novela dramática pela opinião pública internacional…
Ao examinar a história da região, Guilherme Casarões, Professor de Relações Internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e da Escola de Administração de Empresas de São Paulo (FGV), concorda com o lugar de relevância da Síria na região do Oriente, tendo sido o seu território palco de disputas entre grandes potências por influência cultural, comercial e política, sobretudo desde a Guerra Fria.
Durante a Guerra Fria, em função da chegada de partidos seculares e nacionalistas (também conhecidos como parte do movimento do “socialismo árabe”) ao poder na Síria e no Iraque, ambos os países se alinharam com a União Soviética, garantindo-lhe acesso a recursos energéticos e à projeção naval no Mar Mediterrâneo. A lealdade da dinastia Al-Assad, nos últimos anos, é o que sobrou da influência russa naquela região. Com a eclosão da guerra civil, Putin decidiu envolver-se no conflito em defesa do governo estabelecido, de forma a preservar seus interesses históricos – notadamente, a base naval russa em Tartus. No caso americano, a decisão de se envolver no conflito sírio ao lado da oposição sunita relaciona-se com o desejo de garantir a hegemonia política norte-americana no Oriente Médio, a partir da polêmica ideia da promoção da democracia na região. Os EUA acreditam que Assad é um foco de resistência à influência ocidental e que sua substituição poderia abrir espaço para os interesses norte-americanos.
O Café História perguntou a Casarões se o ataque americano pode representar uma mudança no comportamento do país no conflito, já que Trump vinha se mostrando repetidas vezes contrário ao envolvimento direto americano na Síria. Segundo Casarões, tudo depende de como a posição dos Estados Unidos vai evoluir nos próximos tempos:
A princípio, a resposta de Trump é contraditória: na campanha, o presidente prometeu não se envolver diretamente no conflito sírio e até sugeriu que Assad seria um parceiro importante no combate ao radicalismo islâmico e ao Estado Islâmico/Daesh. Por isso mesmo, pode-se entender o ataque mais como uma demonstração de força por parte do presidente norte-americano do que como uma mudança radical de posição. Essa demonstração se dá para dentro e para fora. Internamente, Trump busca reaver sua popularidade tomando uma decisão dura, arriscada, mas que soa bem ao cidadão americano que acredita que o ataque faz parte da promessa de se tornar os EUA mais seguros. Busca distanciar-se, sobretudo, de uma posição de fraqueza de seu antecessor, Barack Obama, que não agiu prontamente diante da acusação do uso de armas químicas na Síria, em 2013. Externamente, Trump segue buscando manter uma posição dominante no mundo, mantendo aliados e inimigos em permanente alerta, em função das incertezas da postura do presidente americano. Por fim, dá um recado à Rússia, de que não desistirá de influenciar o Oriente Médio, abrindo espaço para o rival geopolítico.
Maurício Santoro, professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e ex-assessor de direitos humanos da Anistia Internacional, destaca que o conflito sírio, iniciado em 2011, já é mais longo que a Segunda Guerra Mundial. Para ele, o conflito está associado ao equilíbrio de forças na região em um cenário de fronteiras pós-coloniais:
O governo Assad, com apoio da Rússia e Irã, controla as cidades mais importantes e o litoral do país, mas o Estado Islâmico e grupos rebeldes ainda dominam parcelas expressivas do território. A situação na Síria, e no Iraque, coloca em questão o futuro da ordem regional no Oriente Médio; o que está em xeque é a capacidade das fronteiras pós-coloniais dos países sobreviverem ao esfacelamento da ordem política nos dois países.
Em relação ao bombardeio dos Estados Unidos, Santoro, concordando com Casarões, também acha que é cedo para se falar em uma mudança na política externa americana:
Passada a turbulência inicial pelo ataque, está claro que o lançamento dos mísseis foi uma medida retaliatória ao uso de armas químicas, sinalizando a Assad que esse tipo de armamento (ilegal pelo direito internacional) não pode ser utilizado. Contudo, não houve uma mudança de política externa. Os EUA não embarcaram num esforço de depor o regime sírio. E, naturalmente, o ataque rendeu pontos a Trump na política doméstica. Após meses de derrotas internas em migrações e saúde, o presidente constrói uma imagem de duro em questões internacionais, em contraste com a atitude de Obama com relação a Assad.
Abordagem militar
Fernando Loureiro, mestre em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e especialista em História Militar Brasileira (UNIRIO), disse ao Café História que o envio de uma fragata russa ao Mediterrâneo no último sábado tem um valor limitado. Segundo explica, trata-se de uma “ação de presença”, isto é, uma ação que um Estado toma para projetar seu poder em uma dada região. Por si só, diz Loureiro, o envio dessa fragata não muda muita coisa na região. Do ponto de vista militar, ele entende que outros aspectos devem ser considerados mais importantes na análise do conflito:
Operações militares americanas e de outros países já vinham acontecendo na Síria. Não contra o governo do Assad, mas contra o Estado Islâmico. A novidade deste ataque do Trump é que ele mirou forças do governo. Essa é a novidade. Essa é a diferença. Do ponto de vista militar, o que mais me chama atenção é que o governo russo, ao que parece, desfez um acordo que tinha com as forças de coalisão que vinham atacando o Estado Islâmico. Essa força de coalisão incluía os Estados Unidos. A França também participou de algumas operações, bem como alguns países árabes, caso da Jordânia. O protocolo existia para evitar contatos ou um possível confronto entre essas forças e as russas.
Loureiro também destaca um aspecto mais político. Ao que parece, ele diz, a administração Trump estaria pensando em um futuro da Síria sem a presença de Assad.
Isso é algo muito complicado para os russos, que já estão há algum tempo travando esse combate na Síria, com gasto de material e até mesmo com custo de vidas humanas, e justamente para salvar o regime do Assad. Se o governo americano agora está dizendo que começa a ver o futuro da Síria sem Assad, se ele decidir, de fato, levar adiante operações militares para degradar as forças do Assad e possivelmente levar a uma queda do seu governo, ele estará simplesmente desfazendo tudo aquilo pelos quais os russos lutaram para conquistar até o momento. E aí vai ser uma questão de até que ponto essas forças vão estar prontas para levar o conflito a um outro nível. Eu acho que o Trump está sendo meio Ronald Reagan. É dizer, “olha, os russos só entendem a força. E eu vou chegar lá e se eu tiver que derrubar o Assad com forças militares, operações aéreas, eu vou e darei essa mensagem de forças para os russos; vou colocá-los contra a parede e eles vão ter que ceder”.
Antiamericanismo nas redes sociais: simplificação do conflito
Nas redes sociais, o ataque dos Estados Unidos reativou, sobretudo entre setores da esquerda, uma nova onda de antiamericanismo, algo que, talvez, não se via desde a administração Bush e suas campanhas militares no Afeganistão e no Iraque. Para o historiador Arthur Ávila, professor do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), esse antiamericanismo atrapalha na compreensão do conflito:
O antiamericanismo, assim como o anticomunismo que é seu espelho, serve principalmente para simplificar a complexidade dos processos históricos que engendraram o conflito sírio, principalmente no campo da esquerda. Não raro, lemos/ouvimos que o próprio conflito foi uma invenção da CIA para acabar com o alinhamento entre a Síria e a Rússia, por exemplo, ou para ampliar a presença norte-americana na região. Do mesmo modo, após o injustificável, e provavelmente criminoso, ataque estadunidense ao país, na última semana, setores desta mesma esquerda, em nome de um “anti-imperialismo” bastante caricato, construíram uma narrativa em que um país soberano e “anti-imperialista” estava sendo assaltado pelas forças imperiais de Trump, como se o regime Assad fosse democrático ou mesmo inocente dos vários crimes que lhe são imputados. Alguns, ainda, afirmaram que “Assad não teria como saber dos ataques químicos” que levaram os Estados Unidos a bombardearem o país, tentando construir uma imagem de inocência injustificável para um regime autocrata, brutal e, se Aleppo serve como medida, assassino.
Para Ávila, esse antiamericanismo é bastante evidente nas redes sociais na internet:
Nas redes sociais, um barômetro das opiniões de nosso tempo, houve gente que repetiu o velho chavão sobre o “o Pentágono ser a maior organização terrorista de toda a história” (o que as SS hitleristas diriam disso?) ou chavão da “criminalidade inerente da democracia norte-americana”, como se mais de 200 anos de história pudessem ser reduzidas a uma dúzia de momentos (não existe estado contemporâneo que não tenha sua cota de crimes nas costas, oras). O que espanta nestas declarações é a recusa à complexidade e a necessidade de tentar ordenar o mundo a partir de slogans que parecem saídos dos anos da guerra fria.
O historiador destaca que é importante escapar dos “binarismos políticos cotidianos”:
É evidente que o bombardeio norte-americano é condenável, na medida em que parece ser uma jogada desesperada de Trump para dar um “boost” em sua popularidade e desviar a atenção dos escândalos envolvendo os “contatos russos”, por assim dizer, de seu gabinete. Igualmente, não se pode diminuir as demandas do próprio complexo militar-industrial estadunidense por mais guerras, já que, como se sabe desde a famosa denúncia de Eisenhower, que ele tem interesses econômicos muito claros (guerra é negócio, afinal de contas!). No entanto, e isso é o preocupante, o antiamericanismo que se seguiu aos ataques simplifica um conflito que transcende os binarismos políticos cotidianos e, mesmo que de forma inadvertida, redime o regime de Assad e seus aliados russos, como se “resistentes democráticos” fossem. No caso sírio, não há um “lado” a ser tomado, como os confrontos do já velho século XX, pelo contrário: ali, o que existem são crimes cotidianos cometidos por todos os lados, cuja principal afetada é, obviamente, a população civil síria. Essa é a tragédia política desta guerra: a sua incapacidade de ser enquadrada por narrativas simplistas, à direita e à esquerda. Na busca obcecada por um lado a defender, a esquerda acaba ela própria se colocando ao lado de um regime indefensável (como fazem, aliás, também os anticomunistas que aplaudiram a chuva de Tomahawks ordenada por Trump). Enfim, o antiamericanismo, como outros diversos “antis”, se define sempre pelo negativo, obviamente, e caricaturiza situações que são muito complexas para serem resumidas a uma ou outra frase de efeito. Se é preciso denunciar os desmandos do estado norte-americano e sua inegável ânsia imperial, é preciso fazê-lo sem dar chance de redenção a regimes e governantes que não a merecem.
NOTÍCIAS
ORIENTE MÉDIO
SÍRIA
O conflito na Síria e o contexto histórico da região estão conectados. Foto: Erika Wittlieb, Pixabay. (CLIQUE PARA AUMENTAR) |
Para entender melhor o ataque americano e o conflito que vem ocorrendo na Síria nos últimos seis anos, o Café História conversou com especialistas de diversas áreas. A ideia é iluminar o principal conflito bélico da atualidade. Em 2016, o jornal britânico “The Guardian” divulgou dados do Centro Sírio para Pesquisa Política que apontavam a morte de 400 mil sírios no conflito e de outras 70 mil mortes devido à falta de água e cuidados médicos. O número de feridos chega a 1,9 milhão de pessoas. Uma crise humanitária sem precedentes assola a região, com destaque para o drama dos refugiados. Milhões de pessoas já deixaram ou tentam deixar o território sírio. No Brasil, segundo dados do Comitê Nacional para os Refugiados, 1/4 dos refugiados no país são de Sírios.
A origem do conflito e seu desenvolvimento
“O início dos conflitos na Síria está marcado por diferentes fatores condicionados às características do sistema regional do Oriente Médio”. A avaliação é do professor de história contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Murilo Sebe Bon Meihy. Segundo explicou ao Café História, desde anos 1990, muitos países da região vêm vivendo uma grande pressão interna por mudanças sociais. Na Síria, no entanto, a abertura se deu apenas no campo da economia, a partir da adoção de algumas medidas liberais. No campo político, a repressão apenas aumentou. Segundo explica Meihy, ao longo dos anos 2000 essa escolha de abertura parcial mostrou-se um equívoco:
O resultado dessa tímida reforma foi a instabilidade social, principalmente da classe média, o aumento da pobreza, e a concentração de poderes econômicos e até mesmo militares nas mãos de uma elite ligada ao regime da família al-Assad. Não por acaso, os conflitos na Síria, bem como em outros países do Oriente Médio como a Tunísia, a Líbia, o Egito e o Iêmen são antecedidos por um período de aumento das commodities de alimentos. Outras questões como o desemprego entre os jovens, a corrupção política, e a falta de perspectivas reais de mudança acirraram os ânimos entre esses regimes e a sociedade civil. No caso da Síria, o aparelhamento das forças de segurança empreendido por Bashar al-Assad a partir de sua ascensão ao poder em 2000, permitiu que parte considerável do exército nacional se mantivesse leal ao regime, o que não aconteceu com Kadafi, Ben Ali, Mubarak, e Abdullah Saleh. A resistência aos rebeldes conquistada por Bashar al –Assad nos primeiros dois anos do conflito fez com que a Síria se transformasse em um palco de disputas entre lideranças regionais como Irã, Turquia, Arábia Saudita, e os países petrolíferos do Golfo Pérsico. A partir dessa contenda regional, o ativismo político islâmico passou a se organizar dentro da Síria com o apoio financeiro de alguns dos países citados. Nesse contexto, o caos do conflito iraquiano, vigente desde 2003, torna a fronteira com a Síria um lugar poroso capaz de integrar forças paramilitares de ambos os cenários. Em meio a esse vazio, grupos do ativismo político islâmico como a Frente al-Nusra e o chamado Estado Islâmico conquistam espaço no conflito, operando simultaneamente nos dois conflitos.
Ainda segundo o professor do Instituto de História da UFRJ, esse cenário bastante confuso foi visto pela Rússia como uma oportunidade única de aumentar a sua influência na região, como nos tempos da União Soviética, ao mesmo tempo que outros atores internacionais, como os Estados Unidos e a União Europeia, permaneceram distantes do país.
Para isso, Putin reeditou a velha simpatia soviética pela Síria, traduzida em anos anteriores na manutenção da base militar russa de Tartus, desde os anos 1970, além da recém construída base aérea de Khmeimim, que garantem acesso de Moscou ao Mediterrâneo. A troca entre Síria e Rússia é clara. A sobrevivência do regime de Bashar al-Assad depende do apoio russo; em barganha, a Rússia volta a ser um ator determinante em uma região estratégica como o Oriente Médio.
Meihy destaca também que, no fim das contas, todos os envolvidos no conflito acabam retirando da população civil da Síria “o protagonismo sobre o seu próprio destino”.
A crise dos refugiados é o seu reflexo mais contundente. E a disputa por uma área estratégica como a região de Idlib, alvo recente de um ataque com armas químicas, redireciona os olhares dos Estados Unidos para a crise síria. Mais uma vez, o povo sírio vive sua agonia, assistida como uma novela dramática pela opinião pública internacional…
Ao examinar a história da região, Guilherme Casarões, Professor de Relações Internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e da Escola de Administração de Empresas de São Paulo (FGV), concorda com o lugar de relevância da Síria na região do Oriente, tendo sido o seu território palco de disputas entre grandes potências por influência cultural, comercial e política, sobretudo desde a Guerra Fria.
Durante a Guerra Fria, em função da chegada de partidos seculares e nacionalistas (também conhecidos como parte do movimento do “socialismo árabe”) ao poder na Síria e no Iraque, ambos os países se alinharam com a União Soviética, garantindo-lhe acesso a recursos energéticos e à projeção naval no Mar Mediterrâneo. A lealdade da dinastia Al-Assad, nos últimos anos, é o que sobrou da influência russa naquela região. Com a eclosão da guerra civil, Putin decidiu envolver-se no conflito em defesa do governo estabelecido, de forma a preservar seus interesses históricos – notadamente, a base naval russa em Tartus. No caso americano, a decisão de se envolver no conflito sírio ao lado da oposição sunita relaciona-se com o desejo de garantir a hegemonia política norte-americana no Oriente Médio, a partir da polêmica ideia da promoção da democracia na região. Os EUA acreditam que Assad é um foco de resistência à influência ocidental e que sua substituição poderia abrir espaço para os interesses norte-americanos.
O Café História perguntou a Casarões se o ataque americano pode representar uma mudança no comportamento do país no conflito, já que Trump vinha se mostrando repetidas vezes contrário ao envolvimento direto americano na Síria. Segundo Casarões, tudo depende de como a posição dos Estados Unidos vai evoluir nos próximos tempos:
A princípio, a resposta de Trump é contraditória: na campanha, o presidente prometeu não se envolver diretamente no conflito sírio e até sugeriu que Assad seria um parceiro importante no combate ao radicalismo islâmico e ao Estado Islâmico/Daesh. Por isso mesmo, pode-se entender o ataque mais como uma demonstração de força por parte do presidente norte-americano do que como uma mudança radical de posição. Essa demonstração se dá para dentro e para fora. Internamente, Trump busca reaver sua popularidade tomando uma decisão dura, arriscada, mas que soa bem ao cidadão americano que acredita que o ataque faz parte da promessa de se tornar os EUA mais seguros. Busca distanciar-se, sobretudo, de uma posição de fraqueza de seu antecessor, Barack Obama, que não agiu prontamente diante da acusação do uso de armas químicas na Síria, em 2013. Externamente, Trump segue buscando manter uma posição dominante no mundo, mantendo aliados e inimigos em permanente alerta, em função das incertezas da postura do presidente americano. Por fim, dá um recado à Rússia, de que não desistirá de influenciar o Oriente Médio, abrindo espaço para o rival geopolítico.
Maurício Santoro, professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e ex-assessor de direitos humanos da Anistia Internacional, destaca que o conflito sírio, iniciado em 2011, já é mais longo que a Segunda Guerra Mundial. Para ele, o conflito está associado ao equilíbrio de forças na região em um cenário de fronteiras pós-coloniais:
O governo Assad, com apoio da Rússia e Irã, controla as cidades mais importantes e o litoral do país, mas o Estado Islâmico e grupos rebeldes ainda dominam parcelas expressivas do território. A situação na Síria, e no Iraque, coloca em questão o futuro da ordem regional no Oriente Médio; o que está em xeque é a capacidade das fronteiras pós-coloniais dos países sobreviverem ao esfacelamento da ordem política nos dois países.
Em relação ao bombardeio dos Estados Unidos, Santoro, concordando com Casarões, também acha que é cedo para se falar em uma mudança na política externa americana:
Passada a turbulência inicial pelo ataque, está claro que o lançamento dos mísseis foi uma medida retaliatória ao uso de armas químicas, sinalizando a Assad que esse tipo de armamento (ilegal pelo direito internacional) não pode ser utilizado. Contudo, não houve uma mudança de política externa. Os EUA não embarcaram num esforço de depor o regime sírio. E, naturalmente, o ataque rendeu pontos a Trump na política doméstica. Após meses de derrotas internas em migrações e saúde, o presidente constrói uma imagem de duro em questões internacionais, em contraste com a atitude de Obama com relação a Assad.
Abordagem militar
Fernando Loureiro, mestre em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e especialista em História Militar Brasileira (UNIRIO), disse ao Café História que o envio de uma fragata russa ao Mediterrâneo no último sábado tem um valor limitado. Segundo explica, trata-se de uma “ação de presença”, isto é, uma ação que um Estado toma para projetar seu poder em uma dada região. Por si só, diz Loureiro, o envio dessa fragata não muda muita coisa na região. Do ponto de vista militar, ele entende que outros aspectos devem ser considerados mais importantes na análise do conflito:
Operações militares americanas e de outros países já vinham acontecendo na Síria. Não contra o governo do Assad, mas contra o Estado Islâmico. A novidade deste ataque do Trump é que ele mirou forças do governo. Essa é a novidade. Essa é a diferença. Do ponto de vista militar, o que mais me chama atenção é que o governo russo, ao que parece, desfez um acordo que tinha com as forças de coalisão que vinham atacando o Estado Islâmico. Essa força de coalisão incluía os Estados Unidos. A França também participou de algumas operações, bem como alguns países árabes, caso da Jordânia. O protocolo existia para evitar contatos ou um possível confronto entre essas forças e as russas.
Loureiro também destaca um aspecto mais político. Ao que parece, ele diz, a administração Trump estaria pensando em um futuro da Síria sem a presença de Assad.
Isso é algo muito complicado para os russos, que já estão há algum tempo travando esse combate na Síria, com gasto de material e até mesmo com custo de vidas humanas, e justamente para salvar o regime do Assad. Se o governo americano agora está dizendo que começa a ver o futuro da Síria sem Assad, se ele decidir, de fato, levar adiante operações militares para degradar as forças do Assad e possivelmente levar a uma queda do seu governo, ele estará simplesmente desfazendo tudo aquilo pelos quais os russos lutaram para conquistar até o momento. E aí vai ser uma questão de até que ponto essas forças vão estar prontas para levar o conflito a um outro nível. Eu acho que o Trump está sendo meio Ronald Reagan. É dizer, “olha, os russos só entendem a força. E eu vou chegar lá e se eu tiver que derrubar o Assad com forças militares, operações aéreas, eu vou e darei essa mensagem de forças para os russos; vou colocá-los contra a parede e eles vão ter que ceder”.
Antiamericanismo nas redes sociais: simplificação do conflito
Nas redes sociais, o ataque dos Estados Unidos reativou, sobretudo entre setores da esquerda, uma nova onda de antiamericanismo, algo que, talvez, não se via desde a administração Bush e suas campanhas militares no Afeganistão e no Iraque. Para o historiador Arthur Ávila, professor do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), esse antiamericanismo atrapalha na compreensão do conflito:
O antiamericanismo, assim como o anticomunismo que é seu espelho, serve principalmente para simplificar a complexidade dos processos históricos que engendraram o conflito sírio, principalmente no campo da esquerda. Não raro, lemos/ouvimos que o próprio conflito foi uma invenção da CIA para acabar com o alinhamento entre a Síria e a Rússia, por exemplo, ou para ampliar a presença norte-americana na região. Do mesmo modo, após o injustificável, e provavelmente criminoso, ataque estadunidense ao país, na última semana, setores desta mesma esquerda, em nome de um “anti-imperialismo” bastante caricato, construíram uma narrativa em que um país soberano e “anti-imperialista” estava sendo assaltado pelas forças imperiais de Trump, como se o regime Assad fosse democrático ou mesmo inocente dos vários crimes que lhe são imputados. Alguns, ainda, afirmaram que “Assad não teria como saber dos ataques químicos” que levaram os Estados Unidos a bombardearem o país, tentando construir uma imagem de inocência injustificável para um regime autocrata, brutal e, se Aleppo serve como medida, assassino.
Para Ávila, esse antiamericanismo é bastante evidente nas redes sociais na internet:
Nas redes sociais, um barômetro das opiniões de nosso tempo, houve gente que repetiu o velho chavão sobre o “o Pentágono ser a maior organização terrorista de toda a história” (o que as SS hitleristas diriam disso?) ou chavão da “criminalidade inerente da democracia norte-americana”, como se mais de 200 anos de história pudessem ser reduzidas a uma dúzia de momentos (não existe estado contemporâneo que não tenha sua cota de crimes nas costas, oras). O que espanta nestas declarações é a recusa à complexidade e a necessidade de tentar ordenar o mundo a partir de slogans que parecem saídos dos anos da guerra fria.
O historiador destaca que é importante escapar dos “binarismos políticos cotidianos”:
É evidente que o bombardeio norte-americano é condenável, na medida em que parece ser uma jogada desesperada de Trump para dar um “boost” em sua popularidade e desviar a atenção dos escândalos envolvendo os “contatos russos”, por assim dizer, de seu gabinete. Igualmente, não se pode diminuir as demandas do próprio complexo militar-industrial estadunidense por mais guerras, já que, como se sabe desde a famosa denúncia de Eisenhower, que ele tem interesses econômicos muito claros (guerra é negócio, afinal de contas!). No entanto, e isso é o preocupante, o antiamericanismo que se seguiu aos ataques simplifica um conflito que transcende os binarismos políticos cotidianos e, mesmo que de forma inadvertida, redime o regime de Assad e seus aliados russos, como se “resistentes democráticos” fossem. No caso sírio, não há um “lado” a ser tomado, como os confrontos do já velho século XX, pelo contrário: ali, o que existem são crimes cotidianos cometidos por todos os lados, cuja principal afetada é, obviamente, a população civil síria. Essa é a tragédia política desta guerra: a sua incapacidade de ser enquadrada por narrativas simplistas, à direita e à esquerda. Na busca obcecada por um lado a defender, a esquerda acaba ela própria se colocando ao lado de um regime indefensável (como fazem, aliás, também os anticomunistas que aplaudiram a chuva de Tomahawks ordenada por Trump). Enfim, o antiamericanismo, como outros diversos “antis”, se define sempre pelo negativo, obviamente, e caricaturiza situações que são muito complexas para serem resumidas a uma ou outra frase de efeito. Se é preciso denunciar os desmandos do estado norte-americano e sua inegável ânsia imperial, é preciso fazê-lo sem dar chance de redenção a regimes e governantes que não a merecem.
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10 de abril de 2017
postado poe m.americo
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