Peço desculpas ao leitor se estraguei o café da manhã. Mas o título não é uma previsão; é uma conclusão. Trump já ganhou, mesmo que perca. Porque o populismo vence sempre, mesmo quando não vence. Lição da história.
Nos últimos dias, entediado com tantos clichês sobre a corrida presidencial americana, procurei outras pastagens para os meus neurônios. E encontrei um livro recente de John B. Judis, intitulado "The Populist Explosion", que merece leitura por qualquer pessoa interessada em política.
Como o título indica, é uma análise do populismo nos Estados Unidos e na Europa. Como explicar Donald Trump (e Bernie Sanders)? E como explicar a onda populista que varre Espanha, França, Itália, Áustria, Suécia etc. etc.?
Deixemos a Europa para uma próxima oportunidade. Fiquemos nos Estados Unidos porque a palavra –"populismo"– nasceu lá e só depois emigrou para a Europa (e, claro, para a América Latina).
Para Judis, o "populismo", mais do que uma "ideologia", é sobretudo uma "lógica política": um confronto entre o "povo" e a "elite" em que o líder carismático defende o primeiro contra os alegados abusos da segunda. Trump é apenas o último capítulo de um fenômeno que sempre emergiu em situações de crise.
Essa história começa em finais do século 19, quando o entusiasmo do governo pelo "capitalismo laissez-faire" não era partilhado pelos agricultores do sul e das Grandes Planícies. Uma combinação de desastres naturais, monopólio ferroviário que cobrava forte pelo transporte dos produtos agrícolas e mão de obra barata (da China, do Japão, da Itália) levou à revolta dos trabalhadores nativos, representados pelo Partido Populista, contra a "oligarquia" dos dois partidos.
Exigências dos populistas: nacionalização da ferrovia; fim da imigração (sobretudo chinesa); maior poder para o governo na esfera econômica, de forma a proteger os mais vulneráveis.
O Partido Populista desapareceu com a nova centúria (foi absorvido pelos democratas de William Jennings Bryan). Mas a influência do populismo, à direita e à esquerda, continuou: com o republicano Roosevelt (Theodore) e com o democrata Roosevelt (Franklin).
Aliás, se existe uma lei na dinâmica populista é que ela, quando hiberna, deixa sementes que serão transplantadas para os partidos do sistema.
Escreve John B. Judis, com inteira razão, que Franklin Roosevelt não concedeu prioridade imediata às desigualdades econômicas provocadas pelo Grande Depressão ao ser eleito em 1932.
O Roosevelt do New Deal também se explica com o populismo de Huey Long, o político da Lousiana que, antes de ser assassinado, em 1935, era uma ameaça para os democratas ao defender taxação séria dos ricos e redistribuição de riqueza pelas massas. Roosevelt não desprezou esses argumentos.
Sabemos hoje que o New Deal se tornou a ideologia dominante durante quatro décadas. Pelo menos, até George Wallace entrar em cena, em nome da classe média (e branca) que pagava essa ideologia.
O populismo de Wallace, combatendo a cultura de assistencialismo e a "burocracia corrupta" de Washington, foi tão poderoso que alterou o perfil dos eleitorados democrata e republicano. Os democratas passaram a contar com o apoio da "intelligentsia" e dos profissionais liberais. Os republicanos acolheram o "homem comum" e o desprezo pelas intromissões do governo federal. Até hoje.
E Trump? Como qualquer populista, ele surge no rastro da grande recessão de 2008. Mas nada do que ele diz é novidade. Combater a imigração; proteger a indústria americana da competição internacional; impedir a deslocalização de empresas para fora dos Estados Unidos; cultivar o isolacionismo nas relações internacionais –tudo isso foi dito por Ross Perot ou Pat Buchanan, dois populistas recentes que antecederam Trump e prepararam o caminho.
No futuro, todas essas ideias serão assimiladas e praticadas, de forma mais elegante e racional, pelos partidos do sistema que nunca ficaram imunes às persuasões populistas. A sensibilidade populista é a primeira antena a captar preocupações reais da população, mesmo que as respostas a essas preocupações sejam toscas ou radicais.
Moral da história?
Donald Trump é um pormenor. Como nas leis da química, o populismo que ele encarna nunca morre e nunca perde. Apenas se transforma.
10 de novembro de 2016
Nos últimos dias, entediado com tantos clichês sobre a corrida presidencial americana, procurei outras pastagens para os meus neurônios. E encontrei um livro recente de John B. Judis, intitulado "The Populist Explosion", que merece leitura por qualquer pessoa interessada em política.
Como o título indica, é uma análise do populismo nos Estados Unidos e na Europa. Como explicar Donald Trump (e Bernie Sanders)? E como explicar a onda populista que varre Espanha, França, Itália, Áustria, Suécia etc. etc.?
Deixemos a Europa para uma próxima oportunidade. Fiquemos nos Estados Unidos porque a palavra –"populismo"– nasceu lá e só depois emigrou para a Europa (e, claro, para a América Latina).
Para Judis, o "populismo", mais do que uma "ideologia", é sobretudo uma "lógica política": um confronto entre o "povo" e a "elite" em que o líder carismático defende o primeiro contra os alegados abusos da segunda. Trump é apenas o último capítulo de um fenômeno que sempre emergiu em situações de crise.
Essa história começa em finais do século 19, quando o entusiasmo do governo pelo "capitalismo laissez-faire" não era partilhado pelos agricultores do sul e das Grandes Planícies. Uma combinação de desastres naturais, monopólio ferroviário que cobrava forte pelo transporte dos produtos agrícolas e mão de obra barata (da China, do Japão, da Itália) levou à revolta dos trabalhadores nativos, representados pelo Partido Populista, contra a "oligarquia" dos dois partidos.
Exigências dos populistas: nacionalização da ferrovia; fim da imigração (sobretudo chinesa); maior poder para o governo na esfera econômica, de forma a proteger os mais vulneráveis.
O Partido Populista desapareceu com a nova centúria (foi absorvido pelos democratas de William Jennings Bryan). Mas a influência do populismo, à direita e à esquerda, continuou: com o republicano Roosevelt (Theodore) e com o democrata Roosevelt (Franklin).
Aliás, se existe uma lei na dinâmica populista é que ela, quando hiberna, deixa sementes que serão transplantadas para os partidos do sistema.
Escreve John B. Judis, com inteira razão, que Franklin Roosevelt não concedeu prioridade imediata às desigualdades econômicas provocadas pelo Grande Depressão ao ser eleito em 1932.
O Roosevelt do New Deal também se explica com o populismo de Huey Long, o político da Lousiana que, antes de ser assassinado, em 1935, era uma ameaça para os democratas ao defender taxação séria dos ricos e redistribuição de riqueza pelas massas. Roosevelt não desprezou esses argumentos.
Sabemos hoje que o New Deal se tornou a ideologia dominante durante quatro décadas. Pelo menos, até George Wallace entrar em cena, em nome da classe média (e branca) que pagava essa ideologia.
O populismo de Wallace, combatendo a cultura de assistencialismo e a "burocracia corrupta" de Washington, foi tão poderoso que alterou o perfil dos eleitorados democrata e republicano. Os democratas passaram a contar com o apoio da "intelligentsia" e dos profissionais liberais. Os republicanos acolheram o "homem comum" e o desprezo pelas intromissões do governo federal. Até hoje.
E Trump? Como qualquer populista, ele surge no rastro da grande recessão de 2008. Mas nada do que ele diz é novidade. Combater a imigração; proteger a indústria americana da competição internacional; impedir a deslocalização de empresas para fora dos Estados Unidos; cultivar o isolacionismo nas relações internacionais –tudo isso foi dito por Ross Perot ou Pat Buchanan, dois populistas recentes que antecederam Trump e prepararam o caminho.
No futuro, todas essas ideias serão assimiladas e praticadas, de forma mais elegante e racional, pelos partidos do sistema que nunca ficaram imunes às persuasões populistas. A sensibilidade populista é a primeira antena a captar preocupações reais da população, mesmo que as respostas a essas preocupações sejam toscas ou radicais.
Moral da história?
Donald Trump é um pormenor. Como nas leis da química, o populismo que ele encarna nunca morre e nunca perde. Apenas se transforma.
10 de novembro de 2016
João Pereira Coutinho, Folha de SP
Escritor português, é doutor em ciência política.
Escritor português, é doutor em ciência política.
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