"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

segunda-feira, 18 de julho de 2016

OS INTERVENCIONISTAS ESTAVAM A SERVIÇO DE ERDOGAN? SIM, MAS ELES NEM SUSPEITAVAM DISSO.



Achei excelente o texto A tentativa frustrada de golpe na Turquia é, na verdade, um autogolpe de Erdogan, de Reinaldo Azevedo, de como que reproduzo-o abaixo, para depois comentá-lo:

Digamos que o diabo tivesse acordado de mau humor e resolvesse fazer uma das suas: “Deixe-me ver onde é que vou criar uma confusão para que as coisas fiquem muito complicadas; para que a Europa se sinta ainda mais insegura; para açular as ações terroristas do Estado Islâmico; para levar tensão à Otan; para deixar Obama, uma vez mais, com queixo de estátua e nada a dizer…” E o diabo não poderia ter sido mais certeiro: escolheu a Turquia.

Foi o que se viu com a tentativa desastrada e desastrosa de golpe de estado empreendida por uma parte do Exército na noite desta sexta. Ainda não está claro quais facções exatamente se mobilizaram, mas é possível que, na sua maioria, sejam lideranças laicas das Forças Armadas, que estão sendo progressivamente substituídas, diga-se, por elementos ligados ao Partido da Justiça e Desenvolvimento, do quase ditador Recep Erdogan, primeiro-ministro entre 2003 e 2014 e, a partir de então, presidente da República. Sim, há uma progressiva islamização das Forças Armadas turcas, e essa é um das raízes, apenas uma, da crise. Enquanto escrevo, fala-se em pelo menos 90 mortos e mais de mil militares presos.

Foi uma tentativa de golpe nos moldes clássicos, com tanques da rua, ocupação de emissoras de TV e ataque às forças leais ao governo. Mas falhou. Erdogan, que estava fora do país, por meio de seus porta-vozes, convocou a população a ir às ruas em defesa da legalidade. Os golpistas chegaram a anunciar o controle do país, apressando-se em dizer que agiam para preservar “a ordem constitucional, a democracia, os direitos humanos e as liberdades”.
Acrescentaram que a Turquia manteria todos os seus acordos internacionais. Durou pouco. O mundo repudiou a quartelada, Erdogan venceu a parada e, podem apostar, virá um expurgo em massa de militares, e a perseguição certamente se estenderá a lideranças civis.

É evidente que uma ação dessa natureza não se planeja — E MAL, COMO SE VIU — só nos quartéis. É claro que lideranças da sociedade civil também estavam envolvidas na conspirata. E não duvidem: Erdogan vai esmagá-las. E o que sempre fez com os que se opõem a ele, mesmo sem motivos. Imaginem com uma patuscada sangrenta como essa.

Enquanto isso, muitos intervencionistas, no Brasil, surgiram com a seguinte argumentação: “o golpe na verdade foi organizado por Erdogan”. Com isso, lutavam contra os fatos para manter em suas mentes a ilusão de que o intervencionismo “ainda é uma opção”. Com o lançamento da responsabilidade sobre Erdogan, eles poderiam continuar dizendo: “intervenção militar funciona sim, viu, e quando não dá certo, é porque o deposto é que armou o golpe, como encenação, apenas para se promover”.

Mas novamente a análise de Azevedo exibe algo bastante claro:

A literatura política conhece a expressão “autogolpe”, que designa a prática de governantes autoritários que rompem mesmo a legalidade precária que os sustenta para conquistar ainda mais poder e se impor de forma mais discricionária. Não duvidem! A raposa Erdogan está dando um autogolpe. E explico o que quero dizer.

Não! Os que desfecharam a quartelada não são seus paus-mandados — ainda que não se deva descartar que agentes infiltrados tenham ajudado a elevar a pressão dos quartéis —, mas é evidente que a Turquia não é uma república bananeira, em que meia dúzia de fardados tramam um golpe, sem que os serviços de inteligência detectem a movimentação. Acreditar que Erdogan não sabia da fermentação golpista corresponde a assinar um atestado de estupidez. Diria até que ele tanto sabia que, prudentemente, estava fora do país.

É nesse sentido que a quartelada foi um “autogolpe”. Erdogan pode até ter corrido algum risco, mas o fato é que pagou para ver, na certeza de que as forças que lhe são fiéis aguentariam, como aguentaram, o embate. Não é por acaso que, no seu retorno, depois de retomado o poder, ele tenha agradecido aos céus o ocorrido. Agora, sim, ele poderá passar o rodo nas Forças Armadas como nunca antes na história da Turquia. E a Europa e os Estados Unidos vão ficar de bico calado.

Bingo!

O que Erdogan fez com os intervencionistas na Turquia foi algo similar ao que o PT fez com os intervencionistas no Brasil, com a diferença de que por aqui eles jamais sequer tiveram a chance de conseguir colocar os tanques na rua. Mas os intervencionistas, tanto lá como cá, são incentivados a irem adiante em suas ilusões para que, assim, ajudem aos que pensam na política de forma mais realista.

Erdogan é um tirano sutil. Ele vai oprimir seu povo ainda mais, mas jamais cairá na armadilha de adotar os métodos da tirania tradicional que, como abordei detalhamente no texto “Se der a lógica o golpe militar turco cai. E que venha a lição a ser aprendida”, não servem mais para uma época tão interconectada, onde os fluxos de comunicação são praticamente incontroláveis, cenário muito diferente do que acontecia há quatro ou cinco décadas.

A mente intervencionista se recusa a querer jogar pelas regras do jogo político. Ciente dessa contingência, pessoas como os petistas e a tropa de Erdogan usam os intervencionistas para seus fins. Para Erdogan, os intervencionistas serviram para lhe dar poder de implementar uma ditadura ainda mais solidificada e dissimulada. 
Para os petistas, os gatos pingados que iam no meio das manifestações democráticas pedir intervenção militar desde 2014 serviram apenas para dar coerência ao frame “golpe”. 

A sorte nossa é que os manifestantes democráticos superaram em muitas vezes o número de intervencionistas, abafando o movimento militarista. Caso contrário, o PT teria se dado bem.

Por se recusarem a aceitar os princípios da guerra política, os intervencionistas sempre serão utilizados por pessoas que abraçam a política como um jogo de xadrez. Neste mundo, alguém pode até ignorar a realidade, mas jamais ignorar as ignorar as consequências de ignorar a realidade. Ou, como Alvin Toffler disse, “se você não tem uma estratégia, você é parte da estratégia de alguém”.

Claro que os intervencionistas turcos serviram a Erdogan. Assim como os intervencionistas brasileiros sempre serviram ao PT. E ambos os grupos intervencionistas, em sua maior parte, jamais estavam cientes de sua serventia.


18 de julho de 2016
Luciano Henrique

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