"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

NA MEMÓRIA DO TELEFONE


Preso, o empreiteiro Marcelo Odebrecht não fala, mas suas anotações orientam a investigação que, agora, passou a ter a colaboração direta do governo dos Estados Unidos


A prisão de “Vaca” o deixou inquieto. Àquela altura de abril de 2015, porém, mais preocupante era a situação de “RA”, um de seus principais assessores. Sempre dissera ao próprio e às famílias — inclusive à sua — que se algum dia pegassem alguém dele, iria “lá” para proteger. Assim fez no outono. Achou que “RA” seria preso, levou-o para casa. Aumentava o perigo, agora precisava pensar num Plano B.

Na madrugada de uma quinta-feira da primavera passada, pegou seu iPhone preto de bordas cinzas, abriu a pasta “Calendário” e começou — era um homem que anotava:

“Delação/fallback (RA)” — escreveu. O registro “fallback” era para não esquecer: alternativa extrema em cenário de prisão de “RA”, esgotados todos os recursos para livrá-lo.

Acrescentou: “— Livrar todos e soh eu.” Ou seja, nessa hipótese, “RA” aceitaria o acordo de delação, mas em bastes restritas: livraria todos, deixando-o exposto, sozinho, diante do juiz, procuradores e policiais federais.

Mostraria o plano a “RA”, e, com ele, passaria a todos a mensagem devida: no limite, era com ele — e, como até as crianças em casa sabiam, não entregava ninguém. Continuou desenhando um roteiro sobre o que “RA” diria num acordo. Por exemplo, sobre “Vaca”:

“— Era amigo e orientado por eles pagou-se Feira de cta que eles mandaram. ODB pagava campanha a priori, mas eh certo que aceitava indicações a título de bom relacionamento.”

A organização (“ODB”) adotara a prática de adiantar financiamentos de campanha, mas só das principais. Aceitava sugestões, eventuais.

Seguiu, pensando na voz de “RA” em depoimento: “Campanha incluindo caixa 2 se houver era soh com MO, que não aceitava vinculacao.”

Outra vez, ele posto no alvo. E se, nessa altura, o inquiridor argumentasse sobre “PRC”, o diretor da estatal, primeiro preso e delator premiado do caso? Então, “RA” poderia retrucar: “PRC soh se foi rebate de cx2”.

Agora anotava em espasmos: “Nosso risco eh a prisão” ... “Acordo Leniência CGU?” — sim, era preciso cogitar. E ver com advogados: “Risco Swiss? E EUA?” Porém, ainda mais urgente, era a conversa com o mineiro, governador, com quem previa logo se encontrar. Registrou:

“FP: — Ela cai eu caio; — Dar a dimensao”.

Essas notas na memória de um telefone celular são de Marcelo Odebrecht (“MO”), ex-presidente da empreiteira homônima, e orientam a investigação judicial. Ele está preso há oito meses. “Vaca” é João Vaccari Neto, ex-tesoureiro do PT, preso em 15 de abril do ano passado. “RA” e “MF” são Rogério Araújo e Marcio Faria, ex-assessores de Marcelo na Odebrecht e seus companheiros de cela por quatro meses — foram soltos em outubro. “FP” é Fernando Pimentel, governador de Minas Gerais, segundo a polícia. “Ela” não teve a identidade sugerida no inquérito.

Os riscos sobre as contas na Suíça, temidos por ele, se tornaram fatos nas cortes de Curitiba, Brasília e Berna.

Ontem surgiu uma novidade: o Ministério Público Federal anunciou a ativa cooperação judiciária do Departamento de Justiça dos Estados Unidos na investigação sobre lavagem de dinheiro em que a Odebrecht é personagem central, com transferências a partir de bancos em Nova York. Na prática, significa a abertura de processo contra a empresa nos EUA, onde a Petrobras já se defende em tribunais.



26 de fevereiro de 2016
José Casado, O Globo

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