"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

terça-feira, 2 de junho de 2015

FAÇANHAS DE ONTEM E DE HOJE


Os escritores famosos redigem suas obras para cerca de vinte pessoas, e os de menor alcance escrevem para bem menos. Esta informação constava em artigo de um literato talentoso e muito respeitado, que li no século passado. Mas a minha idade, prezado leitor, não deve ser avaliada com base nesse século passado aí atrás, pois qualquer pessoa com mais de vinte anos lembra-se do que leu no século passado. Faço também a ressalva de que não era uma estatística, mas uma estimativa pessoal. Merece credibilidade, sendo ele do ramo e bom conhecedor dos meios literários.

A estimativa pode parecer estranha, mas contém dados razoáveis e verossímeis. Em primeiro lugar, porque nenhum escritor conhece todos os seus leitores. À medida que vai pondo no papel os fatos, pensamentos, comentários, é também natural ele se perguntar qual seria a opinião de tal e tal amigo cujas posições conhece, tal grupo de pessoas com o qual tem afinidades ou discrepâncias. Assim agindo, pode avaliar o que pensará da obra a média dos seus leitores. E pode prever, por essa amostragem, se os termos que usa, a construção das frases, os conhecimentos necessários para entender o conteúdo, tudo corresponde ao adequado para seus leitores.

Qual o meu objetivo com essas informações? Bem, não mencionei ainda os que escrevem, ou empreendem grandes esforços, ou produzem algum objeto para agradar a apenas uma pessoa. Existem sim, e já vou lhe dar exemplos.

No século passado (de novo) houve um atentado contra a vida do presidente Ronald Reagan, e logo se constatou o motivo. O autor, mentalmente desequilibrado, queria impressionar uma única pessoa, atriz de um filme em cartaz. Imagino que no filme ela se envolvia em algum atentado, e talvez ele tenha procurado demonstrar sua capacidade para fazer a mesma coisa; em seguida passaria a exibir-se diante dela com objetivos fáceis de imaginar. Há loucura para tudo...

Outro fato bem antigo (parece que tudo hoje aponta para o século passado) se refere a uma menina que teve poliomielite (doença considerada extinta... no século passado). A recuperação exigia fisioterapia, durante a qual ela reclamava das dores e outros aspectos desagradáveis. Num dia de choramingos especialmente irritantes, a mãe chamou-a às falas, em termos como estes:

— Minha filha, estamos fazendo tudo ao nosso alcance para você voltar a andar como uma pessoa normal. É o que podemos fazer, mas se não houver cooperação da sua parte, os resultados não serão esses. Você vai ficar aleijada para toda a vida, não vai conseguir emprego nem um bom marido. Se você quer ficar assim, basta parar de fazer os exercícios, mas depois não ponha a culpa em nós.

Resultado: Poucos anos depois, ela se tornou campeã olímpica de corrida. É fácil imaginar quantos esforços fez para agradar à mãe. Parece até que exagerou...

O personagem central de um dos maiores clássicos da literatura mundial dedica todo o tempo dos dois grossos volumes tentando praticar algum ato heroico a fim de impressionar a dama dos seus sonhos. Ou melhor, da sua imaginação, onde Dulcineia del Toboso adquire belezas e virtudes que passaram bem longe da supervalorizada vizinha. Empenhado em praticar façanhas para impressionar a Dulcineia imaginária, Dom Quixote de la Mancha se dá mal ao investir contra moinhos de vento, atacar inofensivos peregrinos que supõe serem malfeitores, atribuir poderes legendários a objetos corriqueiros. Imagina-se dotado de virtudes sobre-humanas, como as que os literatos da época atribuíram a seus personagens dos romances de cavalaria.

Quem eram esses grandes heróis imaginários? Se você conhece Batman, Flash Gordon, Super-homem, Capitão Marvel, Capitão América, Homem Aranha, Jedi, Príncipe Submarino, Tarzan, ou até o Capitão Atlas, troque as roupas deles, as armas que usam, os meios de transporte e mais umas coisinhas, e terá os mirabolantes personagens daqueles romances. São farinha do mesmo saco. O curioso é que os mesmos admiradores desses imaginários heróis modernos caem de porrete em cima de cavaleiros medievais, heróis reais de carne e osso. Por que essa discriminação?


Acontece que a verdadeira cavalaria medieval era realmente heroica, dedicada a causas nobres. Seus feitos grandiosos estão consignados na história das Cruzadas e em muitas outras batalhas decisivas, relegadas hoje a um esquecimento proposital e inexplicável. Os romances de cavalaria deturparam os feitos desses heróis e aviltaram seu objetivo real, substituindo-o pela conquista do amor de uma dama. Cervantes, por meio do seu imaginário Dom Quixote, lançou no ridículo os romances de cavalaria e seus heróis mirabolantes, levando de roldão a real cavalaria medieval, cujas lutas heroicas e memoráveis impediram, entre inúmeras tragédias, a conquista do mundo inteiro pelos muçulmanos. O próprio Cervantes participou de uma delas.

Hoje não temos mais esses heróis. Sua imagem negativa, tal como foi falseada por Cervantes, foi o resultado mais corrosivo e mais permanente, talvez o real objetivo do autor espanhol. Quem o afirma é um grande escritor, para quem Dom Quixote fez mais mal à cavalaria medieval, à nobreza e à civilização cristã do que toda a obra de Voltaire. Não é dizer pouco.

Você vê alguma utilidade nesses mirabolantes personagens de quadrinhos e filmes? Ontem e hoje, farinha do mesmo saco, inúteis e prejudiciais.

02 de junho de 2015
Jacinto Flecha

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