"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

domingo, 31 de maio de 2015

A LÂMINA CRUEL

Assim como uma faca/que sem bolso ou bainha/se transformasse em parte/de vossa anatomia;/qual uma faca íntima/ou faca de uso interno,/habitando num corpo/como o próprio esqueleto

Os versos de João Cabral podem ser lidos a qualquer momento. Mas agora, no Rio, com a sucessão de assaltos a facadas, soam como uma verdade mais profunda. A faca íntima, a faca de uso interno, é também um símbolo de como se arrasta a questão da segurança no Rio.

Compro bicicleta, perco bicicleta, caras e baratas se perdem, elas são levadas no caminho. Isso é de menos. O difícil é ver a situação se deteriorando, como se fosse esse o curso natural. A crise de segurança é tão grande que motivou pesquisadores, criou um grupo de especialistas altamente capazes, entre eles o próprio Beltrame.

Desde quando surgiram as UPPs como alternativa, formulei algumas críticas, embora achasse a experiência importante, depois do que vi em Bidonville e Cité Soleil, ocupadas pelas forças brasileiras no Haiti. No entanto, afirmava que não existem condições de ocupar todas as comunidades do Rio: precisaríamos do exército chinês. E ainda assim em algumas favelas, como na Guerra do Vietnã, assume-se o controle de uma área durante o dia sabendo que à noite muitas vielas estarão nas mãos dos adversários.

Uma política de segurança, creio eu, precisa levar em conta múltiplas variáveis. A mais evidente é a fuga de traficantes para outros pontos, onde não chegam as UPPs. Existem outras mais sutis. Nas áreas em que o tráfico é derrotado, surge um pequeno exército de adolescentes desempregados. Sem uma política para reduzir os danos, através de curso e inserção no mercado de trabalho, a tendência é aumentar o número de assaltos. As UPPs geram problemas quando perdem para o tráfico, mas também quando ganham. Por isso devem ser consideradas apenas um instrumento.

A situação para mim é simples: temos pouco dinheiro, precisamos de inteligência. Em primeiro lugar, no sentido técnico. Os assaltos na Lagoa foram em cadeia. Era possível uma tática de monitoramento e prisão. A Polícia de Nova York já fez isso no metrô, é um caso conhecido. Onde há muito assalto, há uma chance de prender todos os envolvidos. 

O que vamos precisar também é de inteligência política. As UPPs nasceram de uma convergência entre setores sociais, inclusive empresários, como Eike Batista, que por razões óbvias não pode continuar. O governo foi ficando sozinho consigo mesmo. 
E a verdade é que para dar um novo passo é preciso reafirmar a tese de que sem a sociedade, o governo não dará conta do problema, a barbárie tende a crescer. Para realizar uma política de segurança na qual a UPP seja apenas um instrumento, é preciso reativar os laços do governo não apenas com empresários, mas com a sociedade.

Concordo com aqueles que dizem que pagam impostos e têm direito à segurança, uma tarefa inequívoca do governo. Mas a realidade é esta: o problema está fora do alcance de um governo que conte apenas com as próprias forças. Não estou pensando num processo social que transforme o carioca num suíço que telefona para a polícia porque alguém faz barulho no apartamento ao lado. Penso num motorista de ônibus em Israel que nos levava para Tel Aviv e, ao ver uma pequena fogueira na estrada, parou o ônibus e foi apagá-la. Poderia se transformar em algo pior, disse ao retomar o volante. Ele tem a consciência de que se desloca numa área de perigo e passa a se comportar de acordo com ela.

Esse encontro governo-sociedade é muito difícil no Brasil de hoje. Mas quem sabe, num caso tão grave como o do Rio, não seja um primeiro passo decisivo. Isso não significa deixar de cobrar, inclusive do aparato montado para a Copa do Mundo e as Olimpíadas. Até que ponto contribuem de fato com os problemas cotidianos?

As bicicletas se vão, vidas desaparecem e com elas as ilusões de que o governo consiga sozinho conter a violência. As UPPs tremem e com elas treme a convicção de que exista uma bala de prata na política de segurança. É preciso superar o estado de choque e se perguntar, por exemplo, se toda essa dinheirama gasta na segurança dos jogos trouxe algum legado e se, realmente, influi no cotidiano. Enfim, é preciso dar um balance na maneira como se empregam os recursos na segurança e certificar-se de que estão sendo bem usados. E abrir uma discussão sobre a potencial ajuda da sociedade, em mudanças de comportamento necessárias.

Governador e prefeito apontaram para a Justiça, que solta demais. Mas isso é objeto de uma batalha nas próprias leis. Leva tempo. Por que não apresentar saídas para aqui e agora? Na Lagoa, por exemplo, por que não convocar os ciclistas e discutir com eles um projeto comum? Essa distância entre o universo político e a sociedade é algo que neutraliza nossas potencialidades. Infelizmente é também um fato nacional. Estranho viver num país em que os políticos falam uma linguagem e as ruas falam outra. Mundos paralelos.

31 de maio de 2015
Fernando Gabeira

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