"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

O PALESTRANTE CÉTICO

 

Eduardo Giannetti, o conselheiro da elite que desconfia do poder das ideias
por Rafael Cariello

 
Um telão atrás do palco anunciava o 21o Salão do Imóvel, organizado pela Associação das Empresas do Mercado Imobiliário do Espírito Santo. Apesar do nome oceânico, o espaço Atlântico do hotel Bristol Four Towers, em Vitória, não comportava mais do que 100 pessoas. Uma luz branca de açougue iluminava de maneira homogênea orador, plateia e painéis que registravam as atrações do evento.
Menos de 48 horas depois de divulgado o resultado do segundo turno das eleições, Eduardo Giannetti da Fonseca estava ali, atrás do púlpito, para falar das perspectivas para a economia brasileira em 2015. Boa parte dos empresários capixabas que acordaram cedo para ouvi-lo conhecia o palestrante apenas como o “economista da Marina”. Desde 2010, Giannetti é um dos formuladores econômicos das candidaturas de Marina Silva, derrotada duas vezes no pleito de chegar à Presidência da República, primeiro pelo PV, depois pelo PSB.
Duas semanas antes ele estivera em Cuiabá, num dia de tempo seco e calor sufocante, a convite do sindicato dos donos de postos de gasolina de Mato Grosso. Na tarde seguinte ao compromisso em Vitória, marcaria presença numa feira de empresas de tecnologia, na capital paulista. A agenda intensa de compromissos, e o pinga-pinga de voos, continuaria nas semanas subsequentes, já que os finais de semestre são a “alta estação” de seu ramo de negócios. Giannetti é um profissional das palestras.
É também doutor em economia pela Universidade de Cambridge, onde defendeu uma tese ligada à história das ideias e à filosofia, ex-professor da USP e autor de livros sobre ética. Mas sua principal fonte de renda tem sido, desde os anos 90, as conferências em que emite opiniões sobre a vida política e econômica do país ou, alternativamente, em que desenvolve temas sobre os quais já escreveu – as promessas frustradas de felicidade nas sociedades modernas, os conflitos entre ética pessoal e ética cívica, as escolhas de consumo e de poupança dos indivíduos e dos países.
Giannetti realiza entre 100 e 150 palestras por ano, pelas quais cobra 20 mil reais na cidade em que mora, São Paulo, ou 30 mil reais se precisar viajar. Não despacha mala nos voos, exige um carro que o apanhe em casa, e carrega sempre, junto ao corpo, uma gorda pasta de couro preta. Nas horas mortas dos aeroportos do Nordeste e do Centro-Oeste, nas escalas de uma rotina de caixeiro-viajante das ideias, às vezes em cidades poeirentas do interior, retira da bagagem de mão seus dois passatempos prediletos: a revista inglesa The Economist e o suplemento literário do Times londrino.

 
Naquela manhã de outubro, em Vitória, Giannetti anunciou seu plano de ataque ao tema em pauta. “Vou organizar minha apresentação em torno de três perguntas”, explicou aos presentes. “Onde estamos? Como chegamos aqui? Para onde vamos?”
Falava de maneira aparentemente improvisada, sem notas ou discurso escrito e – o que pareceu surpreender alguns habitués de palestra – sem projetor de imagens. Teria que segurar a atenção do público apenas com a oratória. Numa das primeiras fileiras da plateia, o engenheiro Rodrigo Gomes de Almeida, dono da Morar Construtora, se inquietou. “Quando ele começou a falar, pensei: ‘Vai fazer essa apresentação sem slide?’ Ou ele vai se perder ou me perco eu.”
Mas o palestrante tem seus truques. Um deles é a obsessão por ordem e clareza, notável em seus livros e artigos para jornais. Diz perseguir uma “limpidez no enunciado talvez além do razoável”, o que às vezes resulta num didatismo quase irritante, segundo uma amiga próxima. Em momentos-chave das conferências que profere, anuncia o que está por vir, explicitando a estrutura lógica do discurso. Ao discorrer sobre os problemas da economia brasileira, por exemplo, separa “fatores domésticos e externos”, para logo em seguida subdividir os fatores domésticos em outras duas partes, “estruturais e conjunturais”. E assim vai.
A obsessão do economista por ordem, simplicidade e clareza aparece também no apartamento em que mora, na Vila Madalena, em São Paulo. Sobre uma comprida mesa de madeira, uma peça de mobiliário de fazenda, organiza pilhas precisas de jornais e revistas que está lendo, cada uma referente a uma publicação específica. A diarista que limpa o local, uma vez por semana, está proibida de tocar nos livros das estantes. Parede de tijolos expostos, mesa rústica, móveis neutros e funcionais – não existe sinal de ostentação em todo o apartamento.
O discurso lógico e fácil de ser acompanhado não é a única técnica usada por Giannetti nas palestras. Há outra, segundo ele tomada de empréstimo do filósofo e economista escocês Adam Smith, um de seus heróis intelectuais. O autor d’A Riqueza das Nações dependia do pagamento dos alunos, em dinheiro, a cada aula que dava – não podia, portanto, se dar ao luxo de descuidar da popularidade de seus cursos e da atenção constante dos ouvintes. “De tempos em tempos, testo a atenção da plateia, com uma piadinha”, explicou. “O único momento em que você tem certeza da atenção das pessoas é quando elas riem.”
Fez sucesso nas conferências de outubro e novembro uma frase, ligeiramente modificada, de Eça de Queirós. O economista de Marina se referia à vitória de Dilma Rousseff no pleito presidencial, e admitia sua contrariedade com a derrota da oposição. “De tempos em tempos, governos e fraldas devem ser trocados”, declarava. Pausa. “E pela mesma razão.” Pausa breve. Risos na plateia.
Por fim, e talvez o mais importante, sua presença de palco é muito agradável. Giannetti é um sujeito ameno, com ares de bom moço. É alto, mede 1,93 metro; levemente curvado, tem os cabelos em geral desalinhados, apesar de já ralos no topo da cabeça, um sorriso quase constante nos lábios, o rosto bochechudo. Tudo somado, parece um garoto crescido e muito bem-educado. “O Eduardo é uma pessoa muito gostável”, me disse o economista André Lara Resende, um dos formuladores do Plano Real e primo de Giannetti. “O Edu é uma pessoa agradabilíssima, é boa-praça, um homem culto, civilizado”, opinou Persio Arida, outro pai do Real, sobre o amigo desde os tempos da graduação, que ambos cursaram na USP, nos anos 70.
Ao final da apresentação, enquanto biscoitinhos e café eram oferecidos ao público, Rodrigo Gomes de Almeida, o empresário que temia pelo pior quando o conferencista começou a falar, se mostrava entusiasmado. “Foi excelente”, disse. Não havia se perdido. Sua mulher, Flavia Giacomin de Almeida, professora de engenharia civil na Universidade Vila Velha, também era só elogios. “E pode ficar sabendo”, ela me disse, antes de se despedir, com a convicção de quem sabe das coisas: “Na próxima palestra vai ter PowerPoint.”
 

Os livros publicados por Giannetti tratam, de forma geral, de temas éticos. Ao falar sobre Vícios Privados, Benefícios Públicos? A Ética na Riqueza das Nações, o primeiro ensaio desse tipo publicado por ele, em 1993, utilizou outra de suas subdivisões. Disse que o pensamento ético, na história da filosofia, tem duas vertentes básicas. “Uma é a ética pessoal, a outra a ética cívica. A pergunta da ética pessoal é como viver. Como vou tornar a minha vida algo pleno? Como fazer o melhor com o que tenho? A da ética cívica é: considerando que somos seres sociais, quais são as regras de uma boa sociedade? Qual é o conjunto de normas para que todos nós, convivendo no mesmo espaço, possamos perseguir as nossas realizações?”
Essas preocupações, e às vezes a tensão entre elas, também aparecem em obras que vieram depois, como Auto-engano, sobre os limites à ambição de autoconhecimento; Felicidade, a relação complexa entre conquistas práticas da civilização, progresso e bem-estar; e O Valor do Amanhã, que cuida das escolhas que devemos fazer entre o agora e o depois, entre gastar ou poupar, e não apenas em nossas vidas financeiras.
Em seus livros, Giannetti emprega argumentos rigorosos e texto de fácil compreensão para um público amplo. A linguagem acessível e o tema ético – como viver? –, refletido nos títulos, parecem ter tornado quase inevitável a confusão entre o que ele escreveu e livros de autoajuda, que explodiram editorialmente justo na década de 90, quando o economista surgiu para o mercado de livros brasileiro.
Amigos dizem já ter encontrado obras dele nas estantes de autoajuda das livrarias. Sua ex-mulher, Christine Whiting da Fonseca, lamenta os mal-entendidos e as incompreensões que cercam o trabalho de Giannetti, com quem viveu por três décadas e teve um filho, o único do casal, Joel. “O Eduardo é super-rigoroso, lógico. Mas tenho a impressão de que as pessoas não percebem, o rigor dele passa batido. Ele é incompreendido aqui.”
Com ou sem mal-entendidos, os livros e as palestras serviram para elevar Giannetti à condição de “guru” de algumas das famílias mais ricas do país, segundo a definição de um empresário amigo do economista – também ele, o amigo e empresário que pediu para não ser identificado, com um patrimônio considerável.
Um dos irmãos de Eduardo, Roberto Giannetti da Fonseca, é empresário, trabalhou no governo Fernando Henrique Cardoso e foi diretor da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, a Fiesp. Numa conversa em seu escritório, em dezembro, ele confirmou que o caçula é convidado, a cada ano, para um “meeting com umas dez famílias importantes”.
“Ele exerce forte influência no comportamento, nas atitudes que essas famílias vão ter em relação a suas empresas. Fazem essas reuniões de estratégia e de preparação dos filhos, da sucessão. O Eduardo passou a ser convidado para atuar como uma espécie de tutor, de conselheiro. Para dizer para onde vai o mundo, quais os valores importantes para uma pessoa. Às vezes é muito mais fácil para um jovem ouvir e concordar com o Eduardo do que com o pai.”
Entre as “famílias ricas” que já o chamaram ou que o chamam com alguma regularidade estão Ermírio de Moraes (grupo Votorantim), Gerdau, Setubal (banco Itaú), Camargo (da empreiteira Camargo Corrêa) e Marinho (Rede Globo). “Eu atendo esse tipo de solicitação com enorme alegria”, me disse o economista em seu apartamento, em São Paulo. “Gosto de fazer isso. Famílias que querem conversar, e que querem promover encontros entre gerações – eu me sinto apto a dizer alguma coisa. Fui professor e desenvolvi a capacidade de falar com os jovens.”

 
Na juventude, Giannetti acreditou que pudesse influenciar o rumo dos acontecimentos com seu poder de persuasão e com a força das ideias. Foi marxista e militou numa organização de esquerda no movimento estudantil. Seu papel, antes e depois da revolução, seria intelectual. “Não me via como o revolucionário que assalta o Palácio de Inverno. Eu não era dessa cepa. Era o intelectual, que ficava na biblioteca, esmiuçando e interrogando textos, denunciando.”
Por caminhos tortos, que o afastaram do marxismo e o aproximaram do liberalismo, talvez ainda pudesse acreditar nesse papel histórico, em vertente mais modesta. Ao escrever artigos, livros e ministrar palestras, ele tem acesso a centenas de milhares de pessoas. Tem os meios – a faca e o queijo na mão – que lhe faltavam aos 20 anos, e o poder, portanto, de influenciar decisões. Mais até: escolhas éticas.
Mas ele não crê em nada disso. Diz não acreditar em sua capacidade de influenciar decisões e de fazer a cabeça alheia. Admite exceções, mas de maneira geral é bastante cético em relação ao papel das ideias, e do debate de ideias, nos rumos da vida e da história. Na tese que defendeu em Cambridge, procurou mostrar que era falsa a crença disseminada de que elaborações mentais produzidas diante de uma escrivaninha podem ter impacto sobre a vida prática. O filósofo e historiador das ideias Isaiah Berlin, por exemplo, defendia que “os conceitos filosóficos acalentados na tranquilidade de um gabinete de professor podem ser capazes de destruir uma civilização”. Hegel, antes dele, havia dito que o trabalho teórico “realiza mais no mundo do que o trabalho prático: quando a esfera das ideias é revolucionária, os fatos não resistem”.
Eduardo Giannetti hoje qualifica esse tipo de crença como “delírio”. Defende que os homens são movidos por “paixões” – medo, esperança, vaidade – e por crenças e sistemas de crenças derivados dessas paixões. Esses sistemas de crenças, ele diz, são “modos de organizar e simplificar o mundo para torná-lo inteligível”. Podem ter coerência interna, mas não necessariamente fundamento empírico ou lógico.
“Todos nós, querendo ou não, acabamos tendo algumas ilusões. Alguns se aferram mais a elas. Algumas são mais exorbitantes. Ilusões são crenças que estão muito arraigadas, nas quais você investiu muito, e que se precisarem ser revistas implicam perda de identidade e de sentido. Elas são muito protegidas. O Marx, por exemplo, deixar de acreditar que a história tem um sentido, não pode.”
E como essas crenças são formadas? Como chegamos a acreditar naquilo em que acreditamos? “Na linha do filósofo David Hume, eu argumento que o processo é muito menos racional, lógico, do que se supõe. Deriva das paixões. De forças não racionais das quais em geral estamos pouco conscientes. Você tem medo e acredita em coisas por causa desse medo. Ou o caso do wishful thinking: você deseja muito alguma coisa e acaba encontrando elementos na realidade para que aquilo seja verdade.”
Como esses sistemas de crenças, derivados das paixões, são muitas vezes constituintes da identidade dos sujeitos, eles resistem à evidência empírica ou aos argumentos contrários, diz Giannetti. Assim, é muito pequeno o poder das ideias rigorosas contra eles.
Mas ele não para aí. Estende suas conclusões ao que ele próprio faz. Embora cioso da clareza do que diz e escreve, afirma que passou a ser “muito cético em relação à transmissão de ideias”. Em suas conferências, diz, não faz mais do que alugar “uma certa inteligência para consumo e deleite alheio”. “O resíduo dessas palestras é muito pequeno. Em grande parte é da esfera do entretenimento. É para ter um momento agradável, com um cara inteligente. Se eu subisse lá e tocasse violão, não seria muito diferente.”
Giannetti é um palestrante cético. Num fim de tarde, na Vila Madalena, perguntei a ele se isso não era um paradoxo. Ele riu, e concordou. “É, sim, um paradoxo. Não acreditar no poder das ideias e passar a vida fazendo isso. Ninguém se dá conta disso. De que o que eu estou fazendo é muito contraditório. Elaborei intelectualmente que as ideias não têm poder, e que é quase inevitável o mal-entendido na transmissão de ideias. Mas acabei fazendo na minha vida aqui no Brasil uma negação prática da minha elaboração teórica.”

 
Eduardo Giannetti da Fonseca nasceu no dia 23 de fevereiro de 1957, em Belo Horizonte. Ele e André Lara Resende têm um bisavô em comum, João Pinheiro, que participou do movimento republicano e foi presidente do estado de Minas Gerais no início do século XX. Pelo lado materno, o avô, Américo René Giannetti, foi prefeito de Belo Horizonte e empresário. Fundou a primeira indústria de alumínio do país.
O pai de Giannetti, Justo Pinheiro da Fonseca, trabalhava no grupo de René Giannetti, em Minas. Afastou-se da empresa após se desentender com os cunhados e herdeiros do negócio, quando o sogro morreu. Decidiu então tentar a vida em São Paulo, para onde se transferiu com a família doze dias depois do nascimento do caçula. Eduardo era o terceiro filho. Marcos e Roberto têm, respectivamente, nove e sete anos a mais do que o irmão. Os mais velhos chamavam o temporão, durante a infância, de “filho da prosperidade”.
Consideravam que o apartamento de classe média em Higienópolis, para onde se mudaram na chegada à capital paulista, ainda não significava exatamente “prosperidade”. Ela veio depois que o pai passou a ser executivo de banco, enriqueceu e mandou construir, nos anos 60, uma casa de porte no Jardim Europa, bairro da elite paulistana. Pinheiro da Fonseca chegou a ser presidente da Febraban, a Federação Brasileira de Bancos, no início dos anos 70, e Giannetti se lembra do então ministro da Fazenda, Antonio Delfim Netto, indo jantar em sua casa.
Ali, segundo Roberto, a família empregava mordomo, cozinheira e duas ou três arrumadeiras. “O mordomo, de farda branca e calça preta, nos servia à francesa, à mesa, com bandeja”, contou. “Usávamos talheres de prata, guardanapo de linho e copo de cristal. Meu pai fazia questão daquilo. Nós sentados, arrumados, à mesa. O mordomo entrava e servia em ordem decrescente. Meus pais, Marcos, eu e meu irmão. Aquilo era um ritual. No almoço e no jantar.”
Segundo Eduardo, o pai não colocava os pés na cozinha. A mãe, Yone, comandava o serviço doméstico. Era poeta e, no final dos anos 70, resolveu estudar psicologia e se tornar psicanalista. O marido protestou, mas acabou cedendo aos desejos da mulher. “Imagina você contar todas as suas intimidades para uma outra pessoa? Ele achava um absurdo você revelar os sentimentos mais íntimos”, contou Roberto. “Era uma família patriarcal mineira”, explicou o temporão. “Meu pai fechava a cara se, ao chegar do trabalho, minha mãe não estivesse na sala, arrumada, esperando por ele.”
No ginásio, ainda garoto, o autor de Felicidade conheceu Marcos Pompéia, seu grande amigo até hoje. Ao longo da vida, Pompéia sempre representou uma espécie de contraponto a Giannetti. O filho do banqueiro mais tarde ficou rico fazendo palestras, enquanto o colega dos tempos de escola, que hoje ganha a vida como pesquisador e roteirista de não ficção, dirige um Ford Fiesta com o forro rasgado, portas e vidros emperrados. O carro é tão acabado que o dono o apelidou de “Ford Fim de Fiesta”. Pompéia vinha de uma família de esquerda, seu pai era físico e ajudou a organizar o ensino de ponta do Instituto Tecnológico de Aeronáutica. No Colégio Santa Cruz, na passagem dos anos 60 para os 70, discutia com o amigo, afirmando que, sim, a ditadura brasileira torturava pessoas. Giannetti repetia o que ouvia em casa, e achava o contrário.
O nome e o sobrenome de Marcos Pompéia já sugerem a comparação com um senador romano, que o nariz grande, o perfil corpulento e os cabelos brancos mais volumosos nas têmporas, penteados para a frente, corroboram.
Apesar de vir de uma família rica, ou talvez por isso mesmo, Giannetti, segundo Pompéia, “sempre teve uma preocupação estética ligada ao frugal e ao não ostentatório”. “Faz parte de uma visão aristocrática que ele cultiva. Você pode encontrar um nobre inglês que tem um Ticiano na parede e está com o suéter roto no cotovelo. Algo que para ele não é problema nenhum. O Edu tem esse lado de esteta, do qual ele cuida muito. Isso tem a ver com valor social também.”

 
Os anos de adolescência foram difíceis para o jovem Giannetti – sob certo aspecto, um pouco mais difíceis do que são para toda a gente. Um problema hormonal retardou sua puberdade. Aos 16, 17 anos, ainda tinha características – físicas e sexuais – de um menino, inclusive a voz. “No 1º colegial aconteceu uma coisa traumática”, ele me contou, quando o assunto surgiu, depois que lhe perguntei sobre sua altura. Naquela época, ele era o mais baixo da classe e tinha a voz fina. “Numa aula de matemática, fui fazer uma pergunta, com a voz que eu tinha, e o professor achou que eu estava falando em falsete de propósito. E me repreendeu. A classe desabou em mim, porque sabia que eu não estava falando em falsete. Aquela voz era a minha. Fiquei um ano sem abrir a boca em aula.”
No último ano de escola ele fez um tratamento hormonal e as coisas começaram a mudar. “Mas eu entrei na faculdade ainda sem ser um homem, e crescendo. Aos 18, eu ainda estava crescendo. Tem gente que acha que é por causa desse tratamento que eu fiquei assim. Sou bem mais alto que meus irmãos.”
Em 1975, entrou para o curso de economia, na Universidade de São Paulo, e o de ciências sociais, na Escola de Sociologia e Política. Achou o curso da ESP ruim e decidiu estudar sociologia também na USP, um ano depois. Mas a breve passagem pela escola, no Centro de São Paulo, lhe valeu uma das amizades mais importantes e influentes de sua vida, com o poeta Roberto Piva.
Vinte anos mais velho que Giannetti, Piva ficara conhecido no início dos anos 60 por seu livro Paranoia, com poemas longos inspirados, entre outros, pela geração beatnorte-americana, poemas que tematizavam a capital paulista – o próprio poeta definiu o volume como “uma visão alucinatória de São Paulo”. Gostava de rapazes mais novos e “andava pela cidade com uma horda de garotos”, segundo a jornalista Renata D’Elia, que foi amiga do poeta e escreveu sobre ele em Os Dentes da Memória.
Piva tinha estudado, já depois dos 30 anos, na Escola de Sociologia e Política e, mesmo com o curso concluído, ainda batia ponto por lá. Segundo Giannetti, para “caçar rapazes”. “O Roberto Piva se apaixonou perdidamente por mim”, ele disse. “Chegou a se declarar, muito. Eu nunca tive inclinação homoerótica, mas a figura dele, a inteligência faiscante dele, me atraíram. Ainda que muito indisciplinado intelectualmente, ele me abriu um mundo... Até conhecer o Piva, eu era um menino dos Jardins, fechadinho numa redoma. Não conhecia a cidade, não conhecia o mundo da boemia, da arte, da cultura. Ele me abriu esse mundo. Eu consegui reverter essa paixão erótica dele para uma amizade. Consegui segurar, e ele sublimou. Ficamos muito amigos.”
Conversavam quase todo dia, pessoalmente ou por telefone. “A gente frequentava os bares. Eu ia ao apartamento dele, no largo Santa Cecília. Era um apartamento pequeno com pilhas de livros por toda parte. Você tinha que ir trilhando caminho por entre elas. O prédio era ocupado por prostitutas, que moravam lá. Funcionava como zona. Era a região da confusão, da loucura, nos anos 70.”
Giannetti, que já vinha produzindo versos desde o tempo de relativa solidão no colégio, passou a ler muita poesia, orientado por Piva. Outros amigos se juntaram ao grupo. Maria Cecília Gomes dos Reis, professora de filosofia, e Luiz Fernando Ramos, crítico teatral – hoje casados –, eram colegas de Giannetti, da USP. “Eu também estava encantado com poesia e fazia poesia”, disse Ramos. “Essa ideia de que arte e vida se confundem, o Piva era isso. Ele bebia muito. Na época, todos nós bebíamos muito.” Segundo Maria Cecília, “Edu, Nando e Marcos Pompéia eram três garotos lindos que o Piva pegou para orientar”.
Mas Pompéia tinha lá suas reticências. O amigo mais velho era imprevisível. “O Piva chegava numa pizzaria, subia na mesa, tirava a calça e fazia discursos supostamente políticos, citando Rimbaud e Verlaine. Não era a minha praia. Aquela coisa histriônica do Piva, com aquelas citações, eu achava um pouco superficial. Meio qualquer nota.”
Ainda assim, Roberto Piva também foi importante em sua vida. “O que me encantou foi ele me mostrar o mundo gay de São Paulo. Falei: não acredito que isso existe!” Ele adorou a descoberta, disse, porque tinha acabado de “desencanar” com o fato de ser homossexual.
A convivência com Piva e os porres, além da voz e da altura, não foram as únicas mudanças na vida do Giannetti universitário. Sua primeira atividade no curso de economia da USP, ainda como calouro, foi ingressar num grupo de estudos dos textos filosóficos de Mao Tsé-Tung. O “seminário” era ministrado por um aluno veterano, o hoje ministro-chefe da Casa Civil, Aloizio Mercadante. Depois vieram leituras mais sérias. Giannetti se dedicou ao Capital, de Marx, com afinco e, mais tarde, à leitura de Hegel, para poder se tornar um marxista respeitável.
“Não é que ele queria entender Marx; ele queria ser Marx”, explicou Ramos. Por essa época, Giannetti ingressou na Libelu, a Liberdade e Luta, braço no movimento estudantil de uma organização clandestina trotskista, a OSI, Organização Socialista Internacionalista. Deixou a mansão paterna para trás e foi morar numa casa simples, na Vila Sônia, então um bairro de periferia. A rua era de terra, e o trajeto para a USP era feito num Fusquinha. Marcos Pompéia lembra que o quarto do amigo, ali, era atulhado de jornais, que formavam grandes pilhas. Ele lia obsessivamente aquilo tudo para fazer “análises de conjuntura”, distribuídas em murais e panfletos. “O Edu queria fazer carreira dentro da Libelu”, disse Pompéia. “Ele era um cara que estudava de maneira compulsiva para ter uma entrada como intelectual dentro do movimento.”
Mais uma vez, Marcos Pompéia fazia um contraponto ao amigo, agora com os papéis invertidos em relação ao tempo de escola. O discurso dos militantes de esquerda na USP, onde Pompéia estudava filosofia, às vezes lhe parecia “completamente irracional”. Deu como exemplo a atuação do hoje jornalista Paulo Moreira Leite, à época também na Libelu. “Ele subia na carteira e fazia um discurso que se pretendia dialético, hegeliano, uma coisa circular. Como dizia o Schopenhauer, Hegel escreve como uma pessoa que caminha procurando esconder os próprios pés. Ninguém poderia compreender aquilo. Era um exercício de estilo. Aí eu tive altas discussões com o Edu. Era uma esgrima. Não sei quantas vezes ele me disse: ‘Marcos, um dia você vai se converter.’”
O convertido Giannetti ensaiou dar um novo passo na carreira como militante. A Libelu era a porta de entrada para a OSI. Pedindo para não ser identificado, um antigo dirigente da organização explicou a diferença entre as duas entidades. “A OSI selecionava dentro da Libelu aqueles quadros que podiam assumir um compromisso mais firme com a militância revolucionária. E a gente fazia com esses caras um negócio que se chamava grupo de estudos revolucionários. A gente aprofundava as discussões sobre o marxismo, o partido bolchevique, o trotskismo. Era um grupo de estudo de quatro, cinco pessoas. Para quem participava, servia para conhecer a organização e decidir se queria entrar de verdade numa militância ativa.”
Essa militância mais ativa, a verdadeira “práxis revolucionária”, significava ganhar nome de guerra, fazer reuniões semanais, contribuir financeiramente para a organização e “assumir compromissos que colocavam sua vida pessoal em segundo plano”. Militantes mais graduados vendavam Giannetti e outros companheiros e os conduziam às reuniões daquela mistura de grupo de estudos e estágio probatório. “Se alguém fosse preso, não poderia lembrar onde o encontro tinha acontecido”, explicou o economista.
Ele também estava presente na PUC de São Paulo, em 22 de setembro de 1977, quando alunos universitários realizaram uma grande reunião com o objetivo de refundar órgãos representativos do movimento estudantil. Sob o comando pessoal de Erasmo Dias, secretário de Segurança do estado, a universidade católica foi invadida. “Fomos surpreendidos”, lembrou Giannetti. “Entraram com cães e cassetetes, batendo muito. Jogaram muito gás lacrimogêneo. Não cheguei a apanhar, mas vi muita gente apanhando feio. Gente já caída, mulheres grávidas. E os policiais, sei lá, com uma disposição muito agressiva. Uma situação realmente ameaçadora. Algumas pessoas correram e conseguiram fugir. Mas muita gente foi presa.”
Giannetti foi parar num camburão, e passou a noite detido. Disse não ter sofrido maus-tratos na prisão. Por anos, não contou à família o que tinha acontecido.
Seu encanto com a militância trotskista, de toda forma, já arrefecia. Não chegou a entrar para a OSI. Seu afastamento do marxismo – que começou nessa época – e da Libelu, ele descreve de maneira muito menos clara do que é seu hábito ao tratar, em livros e palestras, de questões éticas ou econômicas. Algumas leituras, como as de Nietzsche e Adorno, já o vinham distanciando da visão mais ortodoxa que tinha antes. A abertura democrática, ainda que lenta, também teria contribuído para que ele se desse conta de que a revolução não era um caminho inevitável – tampouco necessariamente desejável. Houve, por fim, fatores pessoais que contribuíram para a mudança. Em termos mais precisos, uma desilusão amorosa.
Giannetti vinha se relacionando com uma outra integrante da Libelu, segundo ele uma jovem “bem mais graduada e respeitada no movimento”. “Fui perdidamente apaixonado por ela”, ele me disse. “Ela também já estava se libertando do movimento, fazíamos leituras que já não eram parte da nossa dieta normal, que não eram bem-vistas pelas hostes mais aguerridas.” O namoro, de todo modo, acabou, por iniciativa dela.
“Eu investi muito na possibilidade de ter uma relação duradoura com essa pessoa. O fato de isso não ter dado certo, por caminhos estranhos – e eu não vou ser capaz de esmiuçar isso como eu gostaria –, acabou enfraquecendo o vigor de tudo em que eu acreditava. Contaminou. Eu tinha muita certeza, muita segurança, era um sonho muito intenso meu. E de repente você passa a duvidar: posso estar enganado.” A dúvida, ele disse, se estendeu a quase todas as áreas de sua vida, incluindo a militância e as ideias marxistas.
Marcos Pompéia se lembra dessa época de maneira mais positiva, apesar de não ignorar o sofrimento do amigo. “Ele tinha se libertado. Teve um momento epifânico de libertação do jugo doutrinário. Era uma coisa emocional. Eu me lembro de um dia, no apartamento dele em Pinheiros, ele se virar para mim e dizer: ‘Marcos, como é que você pode ser livre do jeito que você é? Queria saber como é que você consegue ser livre.’”
Um pouco perdido na vida, Giannetti combinou com o irmão de passar uma temporada na Nigéria, trabalhando. A empresa de Roberto Giannetti da Fonseca tinha negócios daquele país, para onde exportava carne, no final dos anos 70. Estagiou por alguns meses na África. O voo de volta ao Brasil fazia escala em Londres. Como tinha um fim de semana livre na Inglaterra, decidiu visitar um professor do tempo da USP, que estava lecionando em Cambridge. Foi então que, incentivado pelo docente brasileiro, resolveu se candidatar a um doutorado naquela universidade. Acabou sendo aceito, segundo ele contra todas as suas expectativas.

 
Entre a ida para a África e a mudança para a Inglaterra, Eduardo Giannetti conheceu Christine, que estudava na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Ela é uma mulher muito bonita e elegante. Tem os cabelos castanho-escuros na altura dos ombros e olhos azuis. Perto dos 60 anos, não aparenta ter muito mais do que 40. Viram-se pela primeira vez numa festa da FAU, no final de 1979. Em 1980, já moravam juntos. Nesse meio-tempo, Giannetti vinha trabalhando na Fipe, a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, ligada à USP. O Brasil atravessava a segunda crise do petróleo, e o economista estava encarregado de estudar soluções energéticas para o país. Foi então que surgiu seu interesse pelos problemas do meio ambiente. Em setembro de 1981, tendo sido aceito para o doutorado, viajou para Cambridge. Christine chegaria à cidade alguns meses depois. Casaram-se formalmente em julho de 1982.
Passaram algum aperto no início. No primeiro inverno juntos, descobriram que o aquecimento do apartamento em que moravam era quase inexistente. Virou uma espécie de anedota dos dois a história de uma garrafa de leite, esquecida sobre o balcão da cozinha durante a noite. Ao acordar, Giannetti notou que o leite estava congelado. Colocou a garrafa de volta na geladeira, e o leite descongelou.
As coisas só melhoraram quando ele foi aceito para a prestigiosa posição de fellow de um dos mais tradicionais colleges de Cambridge, o St John’s. A distinção, conquistada em 1984, estendia até 1987 o prazo de entrega de sua tese de doutorado e oferecia condições ideais de pesquisa. É nítida a alegria de Giannetti quando se lembra dessa época, quando pôde exercer seu pendor de dedicação exclusiva aos estudos. “Desde a adolescência o Edu tinha essa espécie de fantasia monástica”, contou Pompéia.
“Ser um fellow do college”, disse Giannetti, significava “ser aceito como um par”. “Aí o cara que nem olhava pra você te convida pra tomar vinho. Ele vira seu amigo. Imediatamente. Ele te aceitou. Os ingleses são curiosos. O cara que não te dava nem bom-dia de repente se interessa por você.”
O ex-marido, que segundo Christine já se levantava querendo interpelá-la com questões metafísicas – “ele acorda de manhã já discutindo ideias” –, tinha agora à disposição um gabinete particular de estudos, com vista para o gramado comum do college, e uma caminha, no próprio escritório, onde se esticar no meio da tarde, se achasse que era o caso. “Porque o acadêmico precisa descansar o cérebro, às vezes”, ela comentou, não sem alguma ironia.
Podia também desfrutar da companhia de grandes pensadores e cientistas na High Table, a mesona elevada onde se sentam e são servidos os fellows, transversal às mesas compridas dos estudantes. Vestindo uma toga preta, os comensais se reúnem numa antessala e se encaminham em grupo para a refeição. “No caminho você vai se posicionando para sentar perto de quem quer; e você encontra as pessoas mais inacreditáveis nesse ambiente”, Giannetti explicou. “Um expert em hebraico, um especialista em Dante, um físico teórico. E conversa. Uma das regras não ditas é que não se introduz um tema de interesse corrente. Não se fala de política, de esporte, dessas coisas. Isso não existe, é um mundo menor, vulgar. Fala-se de ideias, de pesquisas, de curiosidades intelectuais.” Uma prece em latim é recitada antes de serem servidos.
O ambiente ali, pelo menos nos anos 80, era machista; quase não havia fellows mulheres, e as esposas não eram aceitas nas refeições formais, disse Christine, a não ser uma vez por ano, na condescendente ladies night. Giannetti ia com frequência ao jantar na High Table, e ela ficava em casa, sozinha. “Eu não achava tão sensacional assim”, comentou, sorrindo.
 
 
A entrada para o college também significou uma mudança de rota em suas pesquisas. Interessado na crise climática desde o final dos anos 70, o intelectual imaginava escrever sobre o conceito de natureza na história das ideias econômicas, e o impacto que o tratamento dado a esse conceito tinha para o próprio meio ambiente. “Estava com a tese quase pronta. Mas aí questionei a premissa fundamental do que eu estava pensando em fazer, que era aquela crença de que as ideias importam. Eu achava que as ideias eram relevantes para entender o que se passa na vida prática.”
No fundo, disse Giannetti, ele acreditava naquele parágrafo do economista John Maynard Keynes, n’A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, em que se lê: “As ideias dos economistas e dos filósofos políticos, tanto quando estão certos como quando estão errados, são muito mais poderosas do que em geral se imagina. Na verdade, o mundo é governado quase que exclusivamente por elas. Homens práticos, que se julgam imunes a quaisquer influências intelectuais, costumam ser escravos de algum economista já falecido.”
Foi nisso que ele deixou de acreditar, auxiliado pela leitura das obras filosóficas de David Hume e de Adam Smith. Giannetti é um historiador das ideias. Segundo ele, “todo historiador das ideias se coloca na posição de quem vai recuperar o sentido original de uma mensagem”. Um dia, em Cambridge, ele se deu conta de que isso não tinha tanta importância. “Se os historiadores das ideias precisam reinterpretar tanto o pensamento dos autores, é sinal de que a transmissão de ideias é algo muito precário.” Se a transmissão era precária, ninguém podia ser escravo das ideias de Marx ou de Keynes, porque nem havia certeza se eram mesmo as ideias daqueles autores que estavam governando as decisões dos homens de vida prática, aí incluídos políticos e gestores econômicos. “Eu fiz disso o tema da minha tese.”
Giannetti defende que os revolucionários russos não precisaram das ideias de Marx para derrubar o czar, nem os governantes europeus, em boa parte do século XX, das ideias de Keynes para aumentar a intervenção estatal na economia. “O Kublai Khan praticou o keynesianismo na Mongólia do século XIII. Ele inventou uma moeda fiduciária, e construiu uma capital assim. Ele imprimia o selo imperial numa casca de árvore, e quem não aceitasse isso como moeda era punido com a pena de morte.”
No caso da Europa, a maior atuação dos governos na economia seria o resultado de um problema histórico específico, não das teorias de Keynes. “Situações práticas humanas favorecem o surgimento de certos pensamentos e de certas crenças. Por exemplo, a aceitação do papel do Estado na economia sempre aumenta durante uma guerra, é natural. Aliás, foi como aumentou no século XX. Não foi nenhum debate ideológico. Se você considerar o aumento da presença do Estado na economia, na Europa, vai ver que está diretamente associado a problemas práticos de organização durante uma guerra. Depois a guerra termina, e aquilo continua.”
Mas e o uso dos termos “keynesianismo” e “marxismo”, que indicam uma origem autoral para determinados conjuntos de crenças? “Eu queria pegar a pessoa que usa esses termos e entender o que ela está chamando de keynesianismo ou de marxismo”, ele me disse. “Usar essas palavras dá um verniz, uma aura de intelectual, de refinamento. A gente usa essas palavras e elas proporcionam um conforto psicológico para aquele que acredita.”
As ideias, segundo Giannetti, além de não governarem a vida prática, talvez não passem de simples adornos no caos da história. Num fim de tarde em dezembro, em seu apartamento da Vila Madalena, perguntei se ele acreditava em algum tipo de filosofia da história. Em algum princípio ordenador do desenrolar das sociedades humanas – que não fossem as ideias, tudo bem; nem mesmo as contradições entre as forças produtivas e as relações de produção, como Marx formulou e ele chegou a acreditar, na juventude. Mas algo.
“Não, não acho que haja nenhuma lei ou conjunto de forças que deem conta da complexidade do curso dos acontecimentos na vida humana”, ele me disse. “A história, como narrativa, é uma grande e muito forçada construção. A gente aplica ao entendimento da trajetória humana um tipo de estrutura que nos é muito caro, esse do começo, meio e fim, e um fim que ilumina e justifica tudo que veio antes. Justifica todas as perdas, todos os problemas, todos os sofrimentos. Essa crença é muito cara. A ideia de que todo aquele sacrifício pode não ter servido para nada é quase insuportável”, ele disse.
“Mas tendo a crer que não exista essa ordem. Eu acreditava nisso muito profundamente. Eu me esforcei muito, durante bons anos da minha vida, tentando construir para mim mesmo narrativas que oferecessem sentido e justificassem as enormidades do nosso passado e do nosso presente. Mas acho que estamos metidos numa coisa muito mais confusa, obscura e impenetrável do que a gente suporta.”
Uma versão da tese de doutorado do economista, defendida em Cambridge em 1987, saiu no Brasil em 2003, sob o título O Mercado das Crenças. Foi o livro que menos vendeu, entre os sete títulos que publicou pela Companhia das Letras.

 
Os amigos dizem que Giannetti voltou diferente da Inglaterra. Ainda era o sujeito estudioso de sempre, e depois de algum tempo foi contratado como professor da USP. Mas parecia mais formal, mais frio. British. “Quando o Edu chegou, ele era uma outra pessoa”, resumiu Maria Cecília Gomes dos Reis, a professora de filosofia e amiga dos tempos de graduação. “Quando ele saiu do Brasil, na época da onda libertária, era muito comum os amigos se beijarem no rosto”, lembrou Marcos Pompéia. “Depois isso foi desaparecendo. Como os argentinos fazem, sabe? Quando ele voltou, era engraçadíssimo. Ele cumprimentava os amigos mais íntimos de um jeito que dava aflição.” Pompéia me estendeu a mão, mas esticando o braço o máximo possível, como que para manter o interlocutor à distância. “Assim, de longe. Provavelmente era como ele cumprimentava os professores de Cambridge. Isso dizia tudo. Era um outro cara.”
Giannetti reconhece a mudança. “Fiquei sete anos na Inglaterra. Voltei muito crítico da cultura brasileira e do modo de vida brasileiro. Da nossa desinformação. Do nosso subdesenvolvimento. Da precariedade real de tudo aqui, da vida intelectual, profissional. E de uma certa efusividade. Isso me incomodava um pouco. Os amigos ingleses não são efusivos, mas são extremamente leais. A cultura latina é uma cultura da efusividade, mas, à toa, à toa, o cara te apunhala da maneira mais sórdida. Tem uma retórica da efusividade, de um falso calor. Eu fiquei muito sensível para isso. Com suspeição dessa efusividade de superfície.”
Com o tempo, e por influência sobretudo de Marcos Pompéia, voltou a se interessar pelo Brasil, e pelas conquistas e possibilidades da cultura brasileira. “Eu me tropicalizei de novo”, disse, rindo.
Mas ainda no período do aperto de mão distante, logo depois do retorno, decidiu se afastar do grande amigo, da pessoa que talvez exercera a maior influência em sua vida durante a juventude. “Ele cortou com o Piva”, disse Maria Cecília. “De uma maneira até, aos nossos olhos, um pouco incompreensível. Para nós era uma coisa inadmissível. De certo modo, era uma traição.”
“O Piva tentava me procurar, queria me encontrar, mas eu perdi a tolerância com um certo estilo dele, fiquei triste de ver a decadência”, explicou Giannetti. “Ele ficou um alcoólatra chato. Insuportável. Ele era louco, totalmente pirado. Divertido quando a gente era jovem. Tinha um lado fascinante, recitava. Mas a bebida foi destruindo ele. E ele ficou muito parasitário, de grana. Estava o tempo todo tentando dar ‘uma mordida’, como ele dizia. Falei pra ele: ‘Piva, acabou. Não vou bancar a sua loucura. Para de beber. Arruma um emprego.’ Eu realmente cortei. E fui talvez um pouco mais ríspido com ele do que talvez devesse ter sido. Mas foi o jeito que encontrei na época.”
Para Luiz Fernando Ramos, marido de Maria Cecília, a amizade com Piva passou a ser “muito ameaçadora” para o amigo dos tempos de USP. “Ele era um outro homem. Tinha virado um liberal, tinha construído isso, tinha largado o marxismo. Como a amizade com o Piva tinha sido muito radicalmente transgressiva, aquilo ameaçava muito. O Piva no começo também foi muito truculento. Lembro uma vez que dei uma apertada no Edu, falei ‘Procura o Piva’, e ele me disse que, da última vez que tinham se visto, o Piva tinha dito que ia fazer cocô na porta da casa dele.”
A jornalista Renata D’Elia, que conviveu com o poeta no final da vida, contou que não era raro pessoas se afastarem, desistirem da amizade com Piva. Disse que ele “podia ser chato, tinha ideias fixas, a certa altura brigava com todo mundo”. Muito antes de Giannetti, Marcos Pompéia já havia rompido com Piva, no final dos anos 70. Uma noite, quando todos os outros amigos haviam abandonado o poeta brigão e bêbado, foi levá-lo em casa, de carro. Quando chegaram, Piva apontou para uma árvore e fez uma ameaça raivosa, que a Pompéia pareceu convincente. Disse que iria enforcá-lo ali. “Eu falei: ‘Chega.’ Era uma coisa muito pesada. Ele estava enlouquecido, e eu não queria me sujeitar a isso.”
 
 
O processo de “aburguesamento” de Giannetti quase se radicalizou no início de 1994, quando recebeu um convite inesperado. O Garantia, durante muito tempo o mais importante – e o mais agressivo – banco de investimentos do país, fundado por Jorge Paulo Lemann, estava procurando um novo economista-chefe. O cargo já havia sido ocupado por André Lara Resende, Claudio Haddad – doutor por Chicago, foi diretor do Banco Central quando Delfim Netto era ministro do Planejamento, no início dos anos 80 – e Armínio Fraga. Em 1993, Haddad já era sócio do Garantia.
“Acho que foi o Delfim que o recomendou”, me disse Claudio Haddad. O antigo czar da economia era amigo da família de Giannetti, tinha boas relações com seu irmão Roberto, dono de uma das principais empresas de exportação do país quando cada dólar que pingava era importante para cobrir as importações de petróleo e pagar os juros da dívida. Mais de uma vez Giannetti comentou que, quando voltou da Inglaterra, a única pessoa que se interessou em ler sua tese foi Delfim.
O jovem doutor acabou sendo convidado para trabalhar no Garantia. Ficou seduzido, ele disse, pela possibilidade de repetir os passos do pai, que fora executivo de banco. “Ele era de um tempo em que cada diretor tinha uma salinha. Um garçom que servia café. Aquela coisa de gentleman. Almoço com vinho. Eu tinha uma fantasia completamente fora da realidade. E também achava que estava sacrificando em demasia a minha família, em termos financeiros – e que ali eu poderia desafogar.”
Em vez de salinha com garçom, Giannetti foi jogado num ambiente aberto, sem divisórias, com todo mundo berrando ao telefone e gritando uns com os outros. Eram pessoas, segundo ele, “obcecadas por ganhar dinheiro, num nível que eu nunca imaginei que pudesse existir”, e com um “ritmo de trabalho além das minhas forças”. Um dos colegas, “para relaxar”, na hora do almoço fazia um curso de piloto de helicóptero. “Eu me lembro de andar pela Paulista, ao sair de lá, com a sensação física de ter sido atropelado por uma jamanta. O estresse, a tensão. Eu não sabia o que fazer, como fazer. Não tinha afinidade com aquelas pessoas.”
Foi no segundo dia, provavelmente, que, em meio à balbúrdia geral, resolveu colocar em dia a leitura, parte de seus estudos. Enquanto os colegas fechavam negócios, abriu em sua mesa um livro publicado em 1939 pelo filósofo escocês David Ross. A obra se intitulava Foundations of Ethics, fundamentos da ética. “As pessoas me olharam como se eu fosse um E.T.”, lembrou.
“Eu comecei numa segunda, devo ter ficado até quarta ou quinta.” Antes do fim da semana, já tinha se demitido.

 
O figurino liberal e cético que Giannetti portava ao voltar da Inglaterra também incluía a recusa a declarar o voto, um princípio que ele manteve firme, por mais de vinte anos. Dado seu afastamento do marxismo, havia quem suspeitasse que, em 1989, ele pudesse ter votado em Fernando Collor.
“Eu não votei nem no Lula, nem no Collor”, ele me garantiu, tranquilo, em seu apartamento. “Não declarava o voto porque achava que tinha o dever cívico de manter certa independência, que me permitisse criticar ou elogiar quem eu quisesse. Eu dizia: sou um cara independente. Não entro em política. Gosto de olhar de fora. Sou um estudioso das paixões que movem as ambições humanas.”
O princípio foi por água abaixo em 2010, quando Giannetti conheceu Marina Silva, passou a apoiá-la e ajudou na redação das propostas econômicas de sua campanha. Foi o compositor Caetano Veloso, com quem ocasionalmente conversa, quem começou a chamar sua atenção para Marina, aí pelo final de 2009. O economista ficou com vontade de conhecê-la. Guilherme Leal, acionista da empresa de cosméticos Natura, que viria a ser candidato a vice-presidente na chapa do PV, disse que já estava, àquela altura, atrás de alguém que pudesse conciliar uma visão rigorosa da macroeconomia com interesse pela questão ambiental.
“Faltava um sujeito que tivesse essa visão”, me disse Leal em seu escritório no Itaim Bibi, em São Paulo. “Eu não sou economista. Eu sou um empreendedor. E houve uma atração mútua. O Eduardo se interessou pela figura da Marina. Alertado pelo Caetano, ele queria entender melhor quem ela era. Eu, por outro lado, também queria atraí-lo.”
Guilherme Leal organizou o primeiro encontro entre Marina e Giannetti no início de 2010. “Deu liga, logo de cara”, me disse o economista. “Havia as nossas preocupações ambientais compartilhadas, e a curiosidade dela por economia.” Já nesse primeiro encontro, de acordo com o relato de Giannetti, a então senadora reconheceu não ter o conhecimento que desejava para falar de economia, o que a angustiava quando se via obrigada a tratar do tema. “Eu sinto vertigem”, Marina lhe disse. “Acho que posso ajudá-la a perder essa vertigem”, ele respondeu. Passaram a se encontrar e conversar com frequência. “Muitas vezes ela me ligava com alguma dúvida. Perguntava se eu concordava ou discordava.”
Um amigo próximo do economista me disse que “a fome de saber de Marina contou para o Giannetti, mesmo que inconscientemente”. Esse seria o principal poder de sedução da ex-senadora, para um sujeito como ele. “Ela está interessada no seu pensamento. Isso atrai e seduz. Político, em geral, não dá atenção a intelectual. Não quer nem saber. Político não gosta disso.”
E, de fato, parece existir ao menos um interesse mútuo, se não uma atração, entre Marina e intelectuais dos mais diversos tipos, como os economistas André Lara Resende e Ricardo Paes de Barros, além do próprio Giannetti e o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro – Marina me disse ter ido ao litoral sul fluminense para a Festa Literária Internacional de Paraty, no ano passado, “principalmente” para assistir à palestra de Viveiros de Castro.
Num relato que ilustra a tese do amigo de Giannetti, André Lara Resende contou ter tido, ele também, “uma grande sintonia com a Marina”, de cara. Conversaram, logo no primeiro encontro, sobre um texto que Lara Resende estava escrevendo. “Dei o ensaio para ela. Era um texto difícil, longo.” Algumas semanas depois, voltaram a se encontrar. “Marina veio falar sobre o ensaio e fez comentários impressionantemente pertinentes. Tinha lido tudo, entendido.”
Na entrevista que me concedeu por telefone, Marina afirmou que já conhecia e havia lido livros de Giannetti antes mesmo de encontrá-lo, e citou trechos da obra do economista. Sobre as conversas que passaram a ter, a partir de 2010, mencionou que seu conselheiro utilizava o “método agridoce de Lucrécio”.
“Tem um texto em que o Giannetti fala desse método agridoce. Para passar uma mensagem às vezes árida, difícil, ele recorria à sabedoria do filósofo e poeta romano. O método consiste em untar com mel a borda de um copo. Quando você percebe, já engoliu o remédio amargo.”
Na campanha do ano passado, depois do acidente aéreo que matou Eduardo Campos e levou Marina Silva a assumir a candidatura do psb à Presidência da República, Giannetti acompanhava a ex-senadora, ajudando-a a se preparar antes de debates e entrevistas à tevê. Colaborou também com o programa de governo. Mas talvez sua participação mais importante nas eleições tenha acontecido depois que Marina deixou a corrida presidencial.
Logo após o resultado do primeiro turno, e antes que Marina fizesse o discurso reconhecendo a derrota, Giannetti declarou à imprensa que, independente da posição a ser tomada pelo PSB e pela Rede, ele pessoalmente passava a apoiar a candidatura de Aécio Neves, do PSDB.
Isso foi na noite de domingo, dia 5 de outubro. Na quarta-feira, enquanto o candidato tucano ainda esperava pela decisão de Marina, o PSB se antecipou e declarou apoio a Aécio. Roberto Giannetti da Fonseca, que é tucano, e Eduardo Giannetti vinham participando das negociações, desde a segunda-feira, para que Marina se encontrasse com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Na manhã de quarta, a reunião a portas fechadas aconteceu, no apartamento do ex-presidente, em Higienópolis. Roberto estava na casa e aguardou ao lado de Walter Feldman, da Rede, até que Marina fosse embora.
Fernando Henrique pediu a Roberto que chamasse o irmão. Segundo Giannetti da Fonseca, na tarde daquele dia, com a ajuda dos dois, o ex-presidente começou
a escrever o documento que continha parte das condições de Marina para apoiar Aécio. “Como é que foi feito então o compromisso que o Aécio assumiu no sábado, lá no Recife, com a presença da família Campos?”, contou o empresário. “O presidente FHC, no computador da casa dele, o Eduardo e eu sentados, cada um numa cadeirinha ao lado. Passamos horas escrevendo. Mandamos para a Marina e para o Aécio. Fizeram algumas alterações. Foram dois dias intensos de negociação.” Na sexta-feira chegaram a um acordo. No domingo, uma semana depois de fechadas as urnas do primeiro turno, Marina declarou seu apoio ao tucano.


 
O doutor Jorge Sabbaga, médico oncologista que atende no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, integra o grupo de amigos da vida inteira de Eduardo Giannetti. Conheceram-se no colégio, onde faziam parte da mesma turma, junto com Marcos Pompéia. A ida de Giannetti para a Inglaterra os distanciou, mas voltaram a se aproximar na década de 90.
Há oito anos, eles mantêm religiosamente o hábito de se encontrar todo domingo, às nove da manhã, e caminhar pelo Parque Villa-Lobos, na Zona Oeste da capital paulista, não muito distante da casa de Sabbaga. As caminhadas, em geral de mais de duas horas, são uma oportunidade para o debate de ideias, e para Giannetti falar dos livros que pretende escrever, dos projetos em que está metido.
O amigo de Giannetti é um sujeito forte, corpulento, de 1,80 metro de altura, com mãos grandes, o pescoço largo e o cabelo grisalho cortado rente à cabeça. É também uma pessoa franca, simples, sem formalidades exageradas.
“Eu tenho aulas particulares, quase, com o Edu”, ele me disse sobre as caminhadas, quando nos encontramos em seu apartamento, no Alto de Pinheiros. Declarou ter sido “doutrinado” pelo amigo sobretudo enquanto discutiam, antes de ser publicado, o livro mais recente de Giannetti, A Ilusão da Alma.
Na obra, mescla de ensaio filosófico e peça de ficção, o narrador – do qual Giannetti faz questão de se dissociar – se descobre, a certa altura, um defensor radical do fisicalismo, ou seja, da ideia de que não só não existe alguma coisa que se possa chamar de “alma”, como também de que a vontade humana, o controle do cérebro e do corpo por uma consciência mental, livre para tomar decisões arbitrárias, é uma ilusão.
Para sustentar essa tese, o narrador nos apresenta uma experiência real, realizada nos anos 80, que no mínimo cria problemas sérios para a ideia de livre-arbítrio. Por meio de eletrodos e por um método sofisticado de marcar, no tempo, as intenções e vontades relatadas pelos participantes, os pesquisadores puderam registrar uma cadeia de atividade neural ligada a tomadas de decisão conscientes – um registro do que acontece no cérebro antes de um ato voluntário. O que se descobriu foi que, um pouco antes, digamos, de o sujeito mexer voluntariamente um dedo, seu cérebro já iniciava uma atividade neural que podia ser registrada pelos eletrodos. Era como se o livre-arbítrio fosse flagrado em sua manifestação física.
O curioso, o perturbador, é que essa escalada de atividade neural registrada pelos eletrodos precedia não apenas a ação muscular, o levantar do dedo, mas a própria consciência da decisão de agir. Primeiro começava a atividade que desembocaria no movimento do dedo – mas só no meio do processo, décimos de segundo depois de iniciado o registro da interação neural, se manifestava a intenção do paciente de mover o dedo. A ordem de eventos descrita na experiência, portanto, era a seguinte: começo da atividade cerebral ligada a uma decisão voluntária; tomada de consciência pelo paciente da decisão de mover o músculo; atividade muscular propriamente dita.
“É como se o meu cérebro soubesse, antes de mim, o que estou prestes a fazer e farei em seguida”, escreve o personagem criado por Giannetti. Dessa experiência, o narrador de A Ilusão da Alma retira a conclusão de que o livre-arbítrio humano está em xeque. Tudo o que fazemos, afinal, de certa forma resultaria de uma cadeia de eventos determinística, em que a consciência e a vontade seriam não mais do que um epifenômeno, um efeito de superfície, e não a causa das nossas ações. Numa entrevista para a tevê, Giannetti explicou essa conclusão da seguinte maneira: “A mente está para o cérebro como o apitar da panela de pressão está para o seu mecanismo de funcionamento. A gente acha que a água ferve porque o apito tocou. Mas, na verdade, o apito toca porque a água ferveu.” A mente – a consciência, o livre-arbítrio – é um subproduto do cérebro.
Quando ouviu pela primeira vez essas ideias do amigo, Jorge Sabbaga resistiu. “Ele começou a falar, e eu disse: ‘Você está maluco.’ Ele respondia: ‘Não, Jorge, pensa bem.’ E ele me convenceu. Eu vi sentido no que ele estava dizendo. Nunca tinha atentado para essa possibilidade.” O curioso é que, embora tenha contribuído para que Sabbaga passasse a se dizer um “fisicalista”, o próprio Giannetti diz não aderir à visão do narrador de seu livro. Considera a ideia, de toda forma, interessante, sedutora e difícil de ser contestada.
Não há, no entanto, conclusão consensual, entre neurocientistas e filósofos, sobre as consequências da experiência citada por Giannetti em seu livro. Procurada pela piauí, a neurocientista Suzana Herculano-Houzel disse que, sim, o livre-arbítrio existe. Ela argumenta que o cérebro não é uma máquina de reagir automaticamente a estímulos, mas que se antecipa a eles e toma decisões, ainda que de modo inconsciente. Além disso, embora comecemos a preparar movimentos antes mesmo que registremos a vontade de fazê-los, a tomada de consciência da ação que está sendo preparada pode levar o sujeito a interrompê-la, se assim decidir. É possível voltar atrás, até o último instante.
Bem, se a hipótese fisicalista de seu narrador e de Jorge Sabbaga está correta, eu disse a Giannetti numa de nossas últimas conversas, então toda a discussão ética a que ele se dedicou ao longo da vida pode ter sido, na verdade, inútil. Afinal, escolhas morais dependem de decisões, e supõem o arbítrio dos sujeitos. Como o autor de Vícios Privados, Benefícios Públicos?, um livro que fala da importância da ética até para o bom desempenho econômico, poderia ter se deixado seduzir por esse tipo de determinismo? Como ele se relaciona com a ideia de livre-arbítrio? “Ninguém pensa nisso o tempo todo”, me disse o economista. “Se eu paro para pensar sobre o livre-arbítrio, fico cheio de dúvidas e perco o pé. Mas, no meu dia a dia, eu ajo como se fosse possível mudar.” De toda forma, mesmo no Vícios Privados, ele não havia ignorado essa questão. Levantou-se da poltrona e se encaminhou para uma estante do outro lado da sala. Voltou e abriu um exemplar do ensaio. Ia começar a ler algo que ele próprio tinha escrito, mais de vinte anos antes.
“No início do livro, na primeira página do prefácio, eu escrevo: ‘Se a nossa capacidade de escolha moral é genuína e existe de fato, ninguém sabe. Acreditar nela, apostar na realidade da autonomia com que nos supomos dotados, acreditar nela talvez não passe de uma relíquia de modos pré-científicos de pensar.’ É um alerta de que muito pouca gente – se é que alguém – se dá conta.”

 
Sabbaga hoje considera A Ilusão da Alma o melhor livro de Giannetti. Afirmou, no entanto, não ter lido com tanto cuidado O Mercado das Crenças, a obra em que seu amigo se mostra cético em relação ao poder das ideias para governar a vida prática. Comentei que Giannetti ia além, desconfiando até mesmo da capacidade de persuasão e do debate de ideias, uma vez que os sujeitos resistiriam a fatos e argumentos que pudessem demovê-los de suas crenças. Sabbaga pareceu genuinamente surpreendido.
“Curioso, não é?”, reagiu. “Mas o Edu se fez lendo ideias. Se ele fosse um intuitivo, eu até entenderia. Mas ele é um cara da razão, da cultura, da leitura. Não entendo isso.” Pareceu pensar um pouco. “Será que nem mesmo entre duas pessoas? Nem nas nossas conversas no parque? Um não influencia o outro? Eu tenho a nítida impressão de que ele está debatendo lá, comigo, com o intuito de me convencer. E eu sou convencido, várias vezes, pelo que ele me diz. Como não importa? Ele me ensinou tudo nessas coisas do fisicalismo, me deixou mais radical.” E repetiu a pergunta, expressando perplexidade: “Como não importa?”
Anunciou então que levaria a questão ao próprio Giannetti, no dia seguinte, quando fariam outra de suas caminhadas. Na manhã de domingo, quando os dois já estavam de roupas esportivas e tênis de corrida, Sabbaga interpelou o amigo. Poucos dias depois, eu quis saber qual tinha sido o resultado da conversa.
Numa mensagem por e-mail, Sabbaga me disse: “Obtive dele a confirmação de que qualquer discurso ou ato, de fato, não é capaz de alterar os conceitos preestabelecidos de uma pessoa. O argumento sobre a minha ‘conversão’ ao fisicalismo a partir de nossas conversas foi rebatido com a afirmação de que eu já era um fisicalista, e não sabia. Mesmo assim, talvez para me consolar, admitiu que entre amigos alguma influência de um sobre o outro pode acontecer, o que daria sentido a nossas acaloradas discussões dominicais.”
Quando voltamos a nos falar, Jorge Sabbaga parecia convencido pelas explicações e pela capacidade de persuasão de Giannetti.


05 de janeiro de 2015
in Revista Piauí

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