"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sábado, 24 de janeiro de 2015

"HORROR, HORROR"

 

Inútil qualquer comentário. Já se comentou tudo o que se tinha de comentar sobre o massacre do Charlie Hebdo. Ao colunista que só agora chega ao assunto resta voltar ao começo. A cocker spaniel Lila andava para lá e para cá, cheirando um, aconchegando-se a outro. Lila habitava a redação do jornal satírico francês.
Tem o pelo claro, como a Lady do desenho animado, e usava uma coleira com a inscrição “Charlie”. Era a manhã fatídica e ia começar a reunião de pauta da publicação. Momento que se contempla depois cheio de espanto é aquele que precede as tragédias. Como é que tudo podia estar tão no seu lugar? Como era possível estarmos tão distraídos, tão seguros, e como podiam as coisas seguir tão inabalavelmente nos trilhos da rotina?
Os jornalistas iam chegando e como quaisquer bons colegas de firma, e não como dos mais malcomportados humoristas da França, desejavam-se feliz ano novo uns aos outros.

Uma palavra para quem não é do ramo sobre a instituição “reunião de pauta”. Claro que há exceções e elas podem ser tensas; também podem ser insossas ou aborrecidas. Mas, em geral, tais reuniões, nas quais se planeja a edição seguinte de uma publicação, são momentos agradáveis, daqueles raros em que está todo mundo junto, não cada um em seu canto, ou mesmo em sua casa, como é cada vez mais comum, e sem a correria e, não raro, a aflição, do momento oposto, na rotina das redações, que é o “fechamento”, caracterizado pela urgência de aprontar tudo nos prazos devidos.
Se já é um momento relax nas redações em geral, mais ainda o será na de um jornal humorístico. Naquela manhã, como sempre, sucediam-se as brincadeiras e jogos de palavras entre a dúzia de jornalistas em torno da mesa. Stéphane Charbonnier, o Charb, o chefe da redação, notório pelas caricaturas de Maomé, garatujava numa folha de papel. Ele desenhava sem parar.

Sempre haverá alguma utilidade em voltar ao começo. Há uma dimensão do horror que só se alcança quando se dispõe dos detalhes – e alguns detalhes do episódio se tornaram disponíveis apenas na semana passada. Nossa narrativa é baseada principalmente no depoimento de dois jornalistas sobreviventes – Sigolène Vinson, prestado ao jornal Le Monde, e Philippe Lançon, ao jornal Libération. Philippe Lançon a certa altura se levantou e pegou seu casaco. Precisava sair. Mas não saiu.
Nesse momento, ouviram-se dois estampidos. Os dois homens de preto haviam começado seu serviço. Ao forçarem passagem redação adentro, mataram o segurança que ficava à porta e feriram o profissional com que primeiro depararam, o webdesigner Simon Fieschi.

Tinham agora diante deles como peças de caça generosamente oferecidas, umas bem junto às outras, para lhes facilitar o trabalho, a redação quase inteira do Charlie Hebdo. Segundo o depoimento de Sigolène Vinson, eles não metralharam suas vítimas; atiraram em um por um. Philippe Lançon foi atingido na maçã direita do rosto. Caiu no chão e se fez de morto, pensando, diria, “que talvez estivesse mesmo morto, ou que logo estaria”. Sigolène Vinson arrastou-se pelo chão e conseguiu esconder-se atrás de uma mureta.
Quando os tiros cessaram, ela ouviu passos que se aproximavam. Um dos homens de preto a localizara. Ele a olhou nos olhos e disse: “Não tenha medo. Nós não matamos mulheres. Eu te poupo e, já que te poupo, você lerá o Corão”.

Na sala de redação os corpos se amontoavam, todos com o rosto no chão, alguns caídos sobre outros. Sigolène vislumbrou entre eles uma mão que se erguia. Era Philippe Lançon, o rosto desfigurado, prensado entre dois corpos que o impediam de mover-se. Sigolène não conseguiu ajudá-lo. Philippe, que embora gravemente ferido está fora de perigo, só seria retirado mais tarde, pelas equipes de socorro.
Carregado de maca, diria ele, “eu sobrevoei meus colegas mortos, Bernard, Tignous, Cabu, Georges (Wolinski), e de repente, meu Deus, eles não riam mais”. De todo o resto, o que ficou para Philippe Lançon, deitado no chão, foram as “pernas negras” dos matadores. Sigolène viu Patrick Pelloux, outro sobrevivente, inclinar-se diante do corpo de Charbonnier, acariciar-lhe a cabeça e dizer: “Mon frère” (Meu irmão). Lila, a cocker spaniel, corria com seus pequenos passos de mesa em mesa. Horror, horror.

24 de janeiro de 2015
Roberto Pompeu de Toledo, VEJA

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