"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sábado, 2 de agosto de 2014

VÍTIMA E CULPADA

Abre-se agora para a Argentina um cenário de incertezas. Essa é uma moratória diferente de todas as outras. O país está pagando aos governos credores através do Clube de Paris, pagou ao FMI, tentou pagar aos credores da dívida reestruturada e está sendo impedida pela Justiça americana. A Argentina é vítima e culpada de seu próprio drama e hoje é uma economia em calote externo.

A solução desesperada apresentada pelos bancos, de comprar 100% da dívida dos fundos chamados abutres, dá um enganoso alívio. Esses fundos que ganharam na Justiça são apenas 10% dos que estão de fora. Têm a receber US$ 1,3 bilhão. Mas existem outros investidores só esperando o momento para requerer a mesma coisa na Justiça. Os bancos não têm fôlego para tanto.

A Argentina é culpada porque hostilizou os credores, politizou o que deveria ser técnica e habilmente conduzido, criou arestas desnecessárias e abriu o caminho para uma decisão contra ela. É vítima porque ficou prisioneira de um sentença inflexível de um juiz distrital americano e de especuladores bem sucedidos. Não houve recursos a uma corte de apelação intermediária, o governo argentino foi direto à Suprema Corte, que decidiu que não era seu assunto. O ministro da economia, Axel Kicillof, ainda tentava convencer que, apesar de não haver acordo, o país não está em default. Quer, pelo visto, uma prorrogação ao fim do tempo regulamentar da partida.

Sem o acordo da dívida com os fundos, todos perdem. A Argentina já está em recessão e com inflação alta, a crise vai se aprofundar porque ela terá mais dificuldades de captação no exterior. E não apenas o setor público terá problemas, mas também as empresas e os bancos argentinos. A classificação de risco de calote técnico emitida pela S&P afastará qualquer emprestador do país.

Perdem também os credores da dívida reestruturada, que sofreram o golpe com o calote em 2001, decretado pelo presidente relâmpago Adolfo Rodriguez Saá, que ficou apenas uma semana no cargo. Eles foram hostilizados em 2005, na primeira etapa de negociação com o então presidente Néstor Kirchner, e acabaram entrando num acordo, que foi ampliado em 2010. Ao fim, já haviam concedido um desconto que oscilou entre 40% e 73% dependendo do título. Estão, agora, na esquisita situação de ter a receber, o devedor tentar pagar, e a Justiça impedir que o dinheiro chegue a eles.

Perde a Justiça americana sobre a qual pesa agora uma enorme dúvida. O foro de Nova York pode ser a jurisdição arbitral escolhida nas negociações de dívida soberana? Como, se a decisão de um único Juiz encurrala um país?

A Argentina em calote não é um bom cenário para o Brasil. Não haverá contágio financeiro e cambial, como em outras crises de dívida, mas todos os efeitos vão piorar um pouco mais a fraca conjuntura brasileira. O comércio entre os dois países foi de US$ 14 bilhões no primeiro semestre, uma queda de 20% sobre o mesmo período do ano passado, ou US$ 3,6 bilhões a menos. O Brasil exporta principalmente automóveis, máquinas e equipamentos, manufaturados, em geral. Nada disso eles comprarão em período de dificuldades.

As reservas cambiais da Argentina são de US$ 27 bilhões. Em julho de 2011 estavam em US$ 52 bilhões. A péssima administração das reservas produziu uma forte redução de dólares em caixa e deixou-os mais vulneráveis no pior momento. Por isso, com as portas do mundo fechadas, e um processo de fuga de capitais, a tendência será importar menos e colocar barreiras ao comércio. Como o Brasil tem negociado acordos comerciais com outros países e blocos através do Mercosul, a crise de um dos parceiros torna ainda mais difícil qualquer avanço.

 
01 de agosto de 2014
Miriam Leitão, O Globo

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