"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

TRÊS FÁBULAS MONTERROSIANAS

O porco-espinho procurou um dermatologista, que constatou carência de vitamina D e recomendou banhos de sol

Era uma vez um porco-espinho que adorava a balada. Toda noite ele ia a festas, clubes ou raves, onde fazia o maior sucesso com seu visual loucão --era muito cool ser amigo de um porco-espinho. Um dia ele acordou às seis da tarde, como de costume, e percebeu que vários dos seus espinhos haviam se soltado durante o sono. O porco-espinho procurou um dermatologista, que constatou carência de vitamina D e recomendou banhos de sol pela manhã. Acontece que o porco-espinho era incapaz de acordar cedo e decidiu não abrir mão das baladas, mesmo sob o risco de ficar careca. Quanto mais caíam seus espinhos, porém, mais escasseavam os convites para as noitadas: o que gostavam no porco-espinho era justamente o seu visual loucão, cheio de espinhos. Hoje, ninguém mais o chama pra nada, as hostess o barram na porta, ele vaga sozinho noite adentro e atende pelo nome de gambá --quando atende, pois, geralmente, se alguém se aproxima, ele exala amargura e corre pro mato.

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A coruja estava no forro do telhado, lendo Proust, quando entrou a andorinha, ofegante. "Nossa, andorinha, que animação...", comentou a coruja, sem tirar os olhos do livro. "Ah, dona coruja! Tô voltando da minha primeira viagem pelo mundo! Eu cruzei a Amazônia e os desertos mexicanos, vi o sol se pôr atrás dos picos nevados dos Andes, fiz amor no céu vermelho da aurora, sobre o mar azul do Caribe!" "Veja só", disse a coruja, passando saliva na pata e virando a página 987 do livro. "Em Manaus, você foi no teatro Amazonas, claro." "Não...", respondeu a andorinha, "mas eu voei com as araras e...". "Poxa vida", cortou a coruja, "Não foi no teatro Amazonas... E no México? No México, pelo menos, você visitou o museu de antropologia, né?". "Na verdade, não...", admitiu a andorinha, se encolhendo entre as asas. "Não visitou o museu de antropologia?! Desculpa, andorinha, mas você não-foi-pro-Mé-xi-co! Só falta me dizer que depois dos Andes cê não passou por Buenos Aires, pra tomar um chá com medialuna num daqueles lindos cafés europeus." "Na-não", confessou a andorinha, com um fio de voz, então pediu licença e foi fazer seu ninho, angustiada, crente que quem sabia das coisas era a coruja, que seguia lendo Proust --agora, com um sorriso no rosto.

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Nada irritava tanto a rã mais pequenininha do brejo quanto ser confundida com uma perereca. "É rã!", ela dizia, cerrando os dentes, toda vez que a confundiam. Um domingo de manhã ela estava no brejo vizinho pegando umas moscas pro almoço quando passou por uma família de pererecas sobre uma vitória-régia. "Nossa, que perereca enorme!", exclamou uma delas. A rã estava prestes e xingar e exibir o dedo médio, mas os comentários das outras foram mais rápidos. "Uau, deve ser ótimo ser uma perereca tão grande!!" "Incrível!" "Mãe, mãe, se eu comer bastante mosca eu vou ficar desse tamanho?"

Na segunda, bem cedo, a rã fez as malas e se mudou para o brejo vizinho, onde é tratada com todas as deferências devidas à maior perereca já vista, às quais ela responde com azedume e rispidez, dedicando as piores patadas às pererecas mais pequenininhas.
 
29 de agosto de 2014
Antônio Prata, Folha de SP

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