A transição do antigo regime militar para a Grande Sociedade Aberta segue incompleta. A corrupção a céu aberto na política e a estagflação na economia são claros sintomas de uma travessia inacabada. Mas não há razão para desespero. Afinal, esta viagem histórica de aprofundamento nas práticas de democracia e mercado é a própria síntese de nossa marcha civilizatória.
"A civilização ocidental começa com os gregos, os primeiros a iniciarem a transição de uma sociedade tribal submetida a poderes mágicos para a sociedade baseada na liberdade e na racionalidade humana. Começou na Grécia antiga esta grande revolução, que mesmo após milênios parece estar ainda em seu início: a transição para a Grande Sociedade Aberta" registra o formidável filósofo da ciência Karl Popper, em seu clássico "A sociedade aberta e seus inimigos" (1945).
Globalização, telecomunicações e internet? "A causa mais poderosa da ruptura das sociedades fechadas foi sempre o desenvolvimento do comércio e das comunicações. Muita evidência disso pode ser encontrada na história da Guerra do Peloponeso de Tucídides, o choque entre a democracia de mercado ateniense e o tribalismo oligárquico de Esparta" observa Popper.
Outro episódio de proporções épicas nesta marcha evolucionária por aperfeiçoamento é descrito por Joseph Ellis, em "Verão revolucionário: o nascimento da independência americana" (2014): "As colônias acreditavam no princípio de que nenhum cidadão britânico teria de pagar tributos legislados sem seu consentimento. Como os americanos não tinham representação no Parlamento, revoltaram-se contra os impostos. Em 1774, em resposta ao quebra-quebra no porto de Boston, os britânicos impuseram lei marcial, transformando uma disputa constitucional em um conflito militar. Em 1775, o rei George III bloqueou ativos americanos, fechou portos e convocou extraordinária força militar para esmagar a incipiente rebelião. A incompetência dos britânicos e de seu rei foi uma providencial oportunidade para um script que seria intitulado a Grande Revolução Americana".
Os desafios da globalização, das comunicações e do excesso de impostos são, como se vê, históricos. O importante é transformar tais desafios em oportunidades de aperfeiçoamento nessa longa travessia.
Ainda falta muito – II
A corrupção a céu aberto na política e a estagflação na economia são os sintomas de uma transição incompleta do Antigo Regime militar rumo à Grande Sociedade Aberta. A hipertrofia do Estado e a concentração de recursos e poderes na esfera da União são heranças malditas de um regime político fechado.
A centralização administrativa e a concentração de verbas no governo federal desvirtuam nossas práticas políticas. Em sua inapetência por reformas, sem ousar um ataque frontal às deformações herdadas, perdeu-se a social-democracia brasileira nessa dimensão fiscal.
Pela ausência de uma reforma fiscal, somos prisioneiros de práticas políticas degeneradas e de uma armadilha de baixo crescimento econômico. Décadas de combate à inflação sem disciplina fiscal resultaram em décadas de juros altos e câmbio baixo, derrubando as taxas de investimento e de crescimento econômico. Com os juros elevados, os sucessivos governos transferiram centenas de bilhões de reais aos rentistas.
Com a sobrevalorização cambial, aceleraram o ritmo da desindustrialização. A ininterrupta escalada dos gastos públicos trouxe também uma parafernália de impostos não compartilhados com estados e municípios, fugindo ao espírito descentralizador da Constituição de 1988. Verdadeiro manicômio tributário. Antirrepublicano. O Brasil se tornava o paraíso dos rentistas e o inferno dos empreendedores.
Uma mudança do regime fiscal que descentralize poderes e recursos para as diversas esferas administrativas de uma autêntica Federação completaria a passagem de um regime político fechado para a Grande Sociedade Aberta. Para auxiliar no combate à inflação, teria também de recalibrar a trajetória futura dos gastos públicos.
Por ignorância econômica, predisposição ideológica e conveniência política, tucanos e petistas mantiveram as engrenagens centralizadas do Antigo Regime. Receberam em troca apoio das criaturas do pântano, políticos fisiológicos e grupos econômicos oportunistas.
“Ventania por mudanças”, “um tsunami que vai varrer o PT do poder”, anuncia Aécio Neves, o principal candidato oposicionista. Seria apenas nova batalha partidária, limitada à tomada de poder? Por que não há uma proposta de reforma política? Como mudar o regime fiscal praticando o presidencialismo de cooptação?
17 de junho de 2014
Paulo Guedes é Economista. Junção de artigos originalmente publicados nos dias 9 e 16 de Junho de 2014 no jornal O Globo.
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