"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

domingo, 9 de março de 2014

A MULA MANCA

O que dizer da Maria Sapatão, que de dia era Maria e de noite era João? Cantava-se tudo isso sem medo de reprimenda

“Sassaricando”, o musical das marchinhas de carnaval reunidas por Rosa Maria Araújo e Sérgio Cabral (rima intencional), continua um sucesso e ainda não entrou em recesso (outra!). É um espetáculo para ser visto mais de uma vez, que eu mesmo vi três (outra!). Incluindo a versão infantil, linda, com a Lucinda (chega). Além da boa música, bem interpretada, “Sassaricando” é um tratado sociológico involuntário, o retrato de um certo Brasil — o Brasil de antes do duplo sentido.
A não ser para quem vê algum tipo e alusão erótica na perna de pau do pirata — e, claro, no próprio verbo “sassaricar” — todas as marchinhas de antigamente são de uma inocência límpida. O que não falta em muitas delas é o que hoje se chamaria de incorreção política.
Uma declara que a única coisa a fazer com mulher feia é matá-la, uma espécie de eutanásia que, supostamente, qualquer delegado ou juiz da época entenderia. Várias outras fazem a apologia da bebida em excesso e brincam com o vicio do alcoolismo, glorificando a danada da cachaça, que ninguém quer que lhe falte.
A homofobia entrou no mundo das marchinhas antes de o termo se tornar conhecido: a cabeleira do Zezé só podia significar uma coisa, visto que ele não era nem bossa nova nem Maomé. Que cortassem o cabelo do veado. E o que dizer da Maria Sapatão, que de dia era Maria e de noite era João? Cantava-se tudo isso sem medo de reprimenda ou revide. Que ninguém, naquele Brasil, entenderia.

Não sei quando a inocência começou a acabar. A Rosa Maria e o Sérgio preferiram não incluir, que eu me lembre, nenhum exemplo da transformação. Talvez ela tenha começado com a “Indio quer apito”, uma anedota musicada sobre o que o índio exigia da madame com incontinência flatulosa. Não sei se antes ou depois apareceu uma marchinha que dizia “Não importa que a mula manque, o que eu quero é rosetar”.
Foi a música mais cantada do carnaval de não me pergunte quando. O que queria dizer a mula manca? E, especialmente, o que era “rosetar”? Recorrer ao dicionário não adiantava.
O Aurélio dizia que “roseta” era um tipo de espora. O “rosetar” da música seria, então, usar as esporas nos flancos, presumivelmente da mula manca, para fazê-la andar. Uma explicação que não satisfazia.
Que estranha ambição seria aquela, de impelir um pobre animal claudicante com esporas? Mas “arrá”, diziam os mais sabidos. Quem não entendia o que era “rosetar” ainda não tinha vivido. O que a marchinha significava era que nada, nem uma “mula manca” — duplos sentidos à vontade — impediria que a partir de então se rosetasse sem parar no país. Há quem date daí o nascimento do Brasil moderno.
 
09 de março de 2014
Luiz Fernando Veríssimo, O Globo

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