Nesse 'Geraldo', o homem que subordina a ética ao Partido, encontra-se a causa da desgraça de Genoino
Um direito sagrado do ser humano é a resistência à tirania. O "Geraldo" capturado com um revólver, uma peixeira e um facão numa manhã de abril de 1972 combatia a ditadura militar --e, apesar de suas ideias, merece respeito por isso. Mas ele tinha ideias. O militante do PC do B lutava pela utopia sanguinária que, na China maoísta, assumira a forma bárbara da Revolução Cultural. E, sobretudo, o jovem comunista acreditava na supremacia da Razão do Partido. Nesse "Geraldo", o homem que subordina a ética ao Partido, encontra-se a causa de fundo da desgraça de Genoino.
"Geraldo" desapareceu por um quarto de século, entre a fundação do PT, em 1979, e o dia em que Lula subiu a rampa do Planalto, em 2003. O Genoino do PT, deputado federal por cinco legislaturas, aprendeu as lições fundamentais: o valor da democracia e a legitimidade da opinião divergente. No Congresso, ganhou o respeito dos adversários políticos e o apoio de um vasto eleitorado de classe média que o tinha como representante da esquerda democrática. No partido, constituiu ao seu redor uma facção orientada pela crítica às ortodoxias de raiz stalinista. Sereno, mas firme, dissentiu incontáveis vezes da maioria lulista --e não se importou em ser rotulado pelas correntes esquerdistas como o líder da "direita do PT". Aquele Genoino tentou persuadir o PT a evoluir como partido social-democrata, uma hipótese que se desfez de encontro à muralha erguida por Lula e José Dirceu.
"Geraldo" ressurgiu do nada na hora do comício da vitória. Atendendo a um pedido de Lula, Genoino já havia desistido de uma reeleição certa para disputar o governo paulista. Depois, sem mandato, aceitou a contragosto o pedido seguinte e assumiu a presidência do PT. Sua facção dissolveu-se na nova maioria lulista e o país perdeu um parlamentar que tinha a vocação de exercer a crítica interna, lembrando aos companheiros que a pluralidade política e a separação de poderes são bens valiosos. Por alguma razão, tragicamente, o terceiro Genoino renegou o segundo, apagando a chama da divergência quando ela era mais necessária do que nunca. O homem que assinou aqueles contratos fajutos era "Geraldo" --não o maoísta, claro, mas o Fiel do Partido, incapaz de compreender razões diferentes da política de poder.
"Geraldo" triunfou sobre Genoino. Depois de assinar o papelório, o terceiro Genoino condenou-se a acompanhar o Partido até o fim. É "Geraldo", não Genoino, que acusa o STF de aplicar-lhe uma nova sessão de tortura. Genoino não diria isso, em respeito a tantos presos que, ainda hoje, sofrem maus-tratos e sevícias em cárceres brasileiros --e em respeito ao próprio "Geraldo". Mas "Geraldo" é capaz de dizer qualquer coisa, se isso servir a um fim político almejado pelo Partido.
Genoino obteve do STF o direito a tratamento médico hospitalar ou domiciliar, o que é razoável, independente das absurdas acusações de "Geraldo". A solicitação de execução da pena em regime de prisão domiciliar não é abusiva. Oxalá o barulho em torno de Genoino force o Ministério da Justiça a rever o cenário desumano dos presídios brasileiros e ajude o Judiciário a reconsiderar o desamparo legal de milhares de presos que seguem encarcerados depois de cumprir suas penas. Mas, que fique claro: o homem que deixa a Papuda não é Genoino --é "Geraldo".
23 de novembro de 2013
Demétrio Magnoli, Folha de São Paulo
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