Vai de vento em popa o campeonato brasileiro de desonestidade na nova fase aberta pela discussão do controle externo do Ministério Público.
Como todas as discussões que se trava sem sair dos limites estreitos da “democracia” sem povo do Brasil, esta é mais uma em que ninguém tem razão. Como todas as outras, da eleição presidencial para baixo, não é senão outro embate de poder entre as facções que se digladiam para ver qual deve ter a primazia de explorar o favelão nacional, que todas zelam unidas para que não possa fazer mais que “assistir bestificado” à proclamação do vencedor de cada contenda.
O ataque, desta vez, vem pelo flanco, com a PEC 5/2021 que reforma o Conselho Nacional do Ministério Público, órgão nascido capenga em 2004. Já então o pretexto era corrigir o excesso de poder conferido pela Constituição de 88 ao Ministério Público, mas sem dar ao novo futuro cabide de empregos poderes reais para fazê-lo. Agora a reforma dessa reforma, como disse Demétrio Magnoli em artigo recente para a Folha, “faz muito e pouco ao mesmo tempo”. Muito dando autorização ao órgão de rever atos de integrantes do MP, uma nítida “vingança” destinada a interromper investigações de corrupção. Pouco ampliando de 14 para 15 o número de assentos no conselho com reserva de quatro indicados pelo Congresso (que antes só indicava dois), numero insuficiente para quebrar a maioria de indicados pelo próprio MP “a ser vigiado”.
Os procuradores intocáveis que, sim, também “utilizaram o poder de investigar e acusar para fazer política”, reagem à ameaça de redução desse poder quase com histeria, o que é compreensível diante do desmonte quase completo das defesas nacionais contra a corrupção que se deu ao longo da manobra em pinça para lavar com aguarrás as fichas sujadas pela Lava Jato, transformar Lula em vítima e Renan Calheiros em paladino do estado democrático de direito. Mas o Congresso, sem duvida nenhuma, também não quer acabar com a classe dos intocáveis, “quer apenas estender esse privilégio aos seus próprios integrantes”. E conta, para isso, com a aliança “fechada” da “imprensa-turba” que deveria ser “a voz do povo” mas, dispensada de todas as regras que fizeram da que havia antes uma instituição da democracia pela cruzada antibolsonarista, escreve editoriais veementes a favor da censura e contra a redução de impostos e emite as sentenças de “antirepublicanismo” que os Alexandres de Moraes se comprazem em executar.
No mundo encantado dessa imprensa está tudo certo com o sistema eleitoral brasileiro e a relação de forças que ele produz entre eleitores e eleitos; o Congresso Nacional realmente representa a sociedade brasileira e, portanto, não deve ter “mera posição figurativa” na corregedoria do MP pois só aquela instituição e nunca o STF ou as bravas excelências e suas CPIs nefandas “lançam acusações judiciais amparadas exclusivamente nas crenças ideológicas” de seus titulares. Para essa imprensa o que define "estado de direito” e “democracia" não é aquilo que Tocqueville descreveu, é o que a C88 da privilegiatura, para a privilegiatura e pela privilegiatura prescreve.
A cobra morde o próprio rabo quando o “lado dos mocinhos”, para resguardar a própria onipotência, também recusa saltar a cerca da antidemocracia. Pois não dá para alegar que Deltan Dallagnol, protestante e formado em Harvard, desconheça qual o fator que distingue essencialmente o promotor publico brasileiro do promotor publico numa democracia.
Nelas, como afirma a C88 “à brinca”, TODO PODER EMANA DO POVO “à vera”. E, para que assim seja, todo governante, todo legislador, todo prestador de justiça e, mais especialmente que os outros, todos os funcionários destacados para fiscalizar o governo, são diretamente eleitos e podem ser diretamente deseleitos, a qualquer momento, pelos eleitores que REPRESENTAM. Sim, porque eles mesmos não “são”, nem “existem” por si, apenas REPRESENTAM uma parcela identificável do eleitorado, a mesma que pode destitui-lo a qualquer momento.
O principal, entre esses funcionários nos Estados Unidos é o promotor geral (attorney general). É ele a principal figura do sistema judiciário de um regime em que cada estado tem a sua constituição, as suas leis e o seu sistema de justiça desde que respeitados os limites gerais com que todos que fazem parte da União EXPRESSAMENTE CONCORDARAM EM ACEITAR, como é da definição do “sistema federativo” que, diz a C88 que a ninguém pediu aceitação, nós “também temos”.
O attorney general existe nos 50 estados americanos e é diretamente eleito em 43 para um máximo de quatro mandatos de dois anos cada com variações para menos entre os estados. São, ao mesmo tempo, o mais graduado funcionário do sistema de imposição da lei (law enforcement), encarregado de decidir as principais ênfases das políticas de segurança pública e, como “advogados do povo”, de dar a decisão final sobre quem pode ou não ser processado por violá-la.
Mesmo lá, onde o congresso realmente representa o povo que escolhe dos candidatos a candidatos aos candidatos eleitos especificamente por cada cidadão, o attorney general é diretamente eleito pelo povo e pode ser deseleito por ele a qualquer momento.
Não é, portanto, apenas a transitoriedade dos mandatos que os diferenciam dos nossos - os promotores brasileiros entram no MP por concurso para lá permanecerem a vida inteira detendo esse poder “que corrompe sempre e corrompe absolutamente quando é absoluto” - é principalmente o “patrão” a que eles diretamente respondem que dispensa o papo furado que vimos assistindo ha séculos sobre quem deve mandar em quem dentro dos limites blindados do Sistema, a discussão recorrente para definir apenas e tão somente quem vai ter o poder de “livrar a cara” de quem viola a lei.
07 de novembro de 2021
vespeiro
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