"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

AS ILUSÕES PERDIDAS

Depois da revolução sandinista, Daniel Ortega virou um ditador corrupto

Não tinha lido a autobiografia de Sergio Ramírez, Adiós Muchachos (2007), e a terminei, comovido. É um livro sereno, muito bem escrito, eufórico na sua primeira metade e muito triste na segunda. Conta a história da revolução sandinista que, em 1979, pôs fim à terrível dinastia Somoza na Nicarágua, uma das ditaduras mais corruptas e cruéis na história da América Latina. Revolução na qual o comandante Daniel Ortega teve um papel importante, primeiro como conspirador e resistente e depois como presidente do país, do qual Ramírez foi vice-presidente.

Foram muitos anos de luta, sacrifício e heroísmo, em que milhares de nicaraguenses perderam a vida e a liberdade, foram torturados, exilados, passaram longos anos na prisão, enfrentaram uma Guarda Nacional cuja selvageria não tinha limites. Os rebeldes eram, sobretudo, pessoas humildes, os pobres entre os mais pobres, mas a eles foram se unindo a classe média e, no final, profissionais, empresários e agricultores, principalmente seus filhos, impelidos por um idealismo generoso, na esperança de que, com a queda da ditadura, teria início um período de justiça, liberdade e progresso para o povo de Rubén Dario e Augusto César Sandino.

Muitas mulheres combateram à frente dessa revolução, como também católicos. A Nicarágua talvez seja o país onde o catolicismo está mais presente na América Latina e Ramírez descreve com muita propriedade as diversas correntes que formaram essa aliança de comunistas, socialistas, democratas, liberais, castristas, que apoiou a revolução no início, até surgirem as inevitáveis divisões.

São emocionantes seus relatos em Adiós Muchachos, evocando o entusiasmo e a alegria vividos pela imensa maioria dos nicaraguenses nos primeiros tempos da revolução – as campanhas de alfabetização, a transformação de quartéis em escolas, a distribuição de terras, as fábricas expropriadas de Somoza e seus cúmplices e transferidas para setores de menor renda. Era o início do que parecia ser a grande transformação da Nicarágua em um país realmente livre, democrático e moderno.

Não foi o que ocorreu e Ramírez culpa os “contras” financiados pela CIA pelo fracasso da revolução sandinista. Tenho a impressão de que a contrarrevolução foi mais efeito do que causa, em virtude do descontentamento de um amplo setor da sociedade com a política equivocada do regime para transformar o país em uma sociedade estatizada e coletivista, com nacionalizações em massa e a criação de uma agricultura camponesa no estilo soviético e as emissões de moeda sem lastro, que, em vez de impulsionar, arruinaram a economia nacional, criando uma inflação galopante e afetou os mais pobres.

A desordem e o caos, a corrupção, a chamada piñata” (a repartição entre os donos do poder de bens e fundos públicos) que ele descreve magistralmente no capítulo do livro intitulado “Os rios de leite e mel”, tinham de desencantar e empurrar para a oposição muitos nicaraguenses que odiavam a ditadura de Somoza, mas não queriam que ela fosse substituída por uma segunda Cuba. A propósito, é fascinante descobrir que uma das pessoas que mais tentou moderar os dirigentes sandinistas em suas reformas foi Fidel Castro!
Despótico

A segunda parte do livro é de uma tristeza crescente, quando ele fala do progressivo revés da revolução, as divisões entre os sandinistas e a lenta, mas firme, ascensão de Daniel Ortega e sua mulher, Rosario Murillo, a um tamanho poder do qual desfrutaram apenas alguns déspotas na história latino-americana. Terra de grandes poetas e excelentes escritores, como o próprio Sergio Ramírez, a Nicarágua terá de produzir algum dia um livro que narre a história de Daniel Ortega, esse alucinante personagem que, depois de comandar a revolução sandinista, foi se transformando em um Somoza moderno, ou seja, um ditadorzinho corrupto e manipulador que, traindo todos os princípios e se aliando a seus inimigos do passado, conseguiu desfrutar de um poder absoluto ao longo de 20 anos, sendo reeleito várias vezes e, por incrível que pareça, ainda desfrutando de alguma popularidade.

Para conhecer um pouco da sua história temos de fechar o livro Adiós Muchachos e ler o esplêndido ensaio do mesmo Ramírez, El Estallido del Populismo, onde está sintetizada com toques de realismo mágico a trajetória até nossos dias desse inverossímil personagem.

No momento, ele faz uma oportuna conversão ao catolicismo e agora recebe devotadamente a comunhão dada pelo cardeal Miguel Obando y Bravo, seu antigo inimigo mortal e hoje fervoroso aliado, que abençoou o governo “cristão, socialista e solidário” de Daniel Ortega e Rosario Murillo. E também firmou um pacto com empresários mercantilistas que, com a condição de não se falar nunca de política, realizam muitos bons negócios com o governo.

No entanto, talvez o mais surpreendente seja o fato de que, dessa disparatada aliança que conseguiram armar para se manter no poder, Daniel Ortega e Rosario Murillo (vice-presidente e que poderá ser a próxima governante se seu marido decidir entrar em férias) fazem parte bruxos, curandeiros, feiticeiros e milagreiros.

Ramírez escreve: “A mão aberta de Fátima, filha de Maomé, com um olho no centro, que representa bênçãos, poder, força e também proteção contra o mau-olhado, está desde 2006 em um imenso mural atrás do assento do casal presidencial na sala de reuniões”.

O ensaio também aborda os fantásticos projetos com os quais Ortega e Murillo, numa paródia de House of Cards, alimentam as ilusões dos seus eleitores, como o famoso Grande Canal da Nicarágua, que iria competir com o do Panamá e seria financiado pelo bilionário chinês Wang Ying (acordo já desfeito e esquecido) e um laboratório farmacêutico em Manágua para produzir nada menos que uma vacina contra o câncer. A lista de ficções é enorme e parece ter saído de Macondo.

Tudo isso Ramírez relata com objetividade, embora por trás da moderação e da elegância com que escreve observemos um profundo pesar. Que deve ser o de muitos nicaraguenses que, como ele, dedicaram os melhores anos da sua vida, seu tempo e seus sonhos a lutar por uma ilusão histórica que se converteu numa efêmera realidade, mas se desfez e transformou-se numa grotesca caricatura. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

09 de agosto de 2017
Mario Vargas Lhosa
É PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA
Estadão

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