Quando uma escola de samba tradicional é financiada por uma ditadura estrangeira, chegamos ao fundo do poço
“O Brasil está na idade da tramela!”, dizia um grande intelectual. Tendo estudado nos Estados Unidos e lá, como dizia Monteiro Lobato, fora lapidado, pois jamais rejeitara o seu lado brasileiro (o qual foi, ironicamente, intensificado na convivência por contraste com o que, àquela época, chamava-se de “países adiantados”), ele era capaz de enxergar o que todo mundo simplesmente via como as nossas arqueológicas tramelas.
Quem saiu do Brasil para as “Europa” ou “América” até os anos 60 (como foi o meu caso), ficou espantado com a ausência das “tramelas” e das gigantescas chaves de ferro; esses instrumentos dos superiores que permitiam abrir ou fechar portas, cadeias, porões, dispensas e gavetas. Esses compartimentos que até hoje são vedados a quem continua a ser tratado como “povo”, pois jamais foi lapidado ou visto como cidadão.
Quando visitei os Estados Unidos pela primeira vez, recebi a chave não só do meu modesto escritório mas — eis o susto — a do prédio do famoso Departamento de Relações Sociais de Harvard!
No Brasil, receber essas máquinas “depende”.
O ministro tem a chave de todos os prédios e somente ele abre a sua porta. Nas democracias, todos têm precisamente a chave da porta dos que governam, já que presidentes, ministros, governadores, senadores e deputados servem ao povo. É, pois, do povo a propriedade das chaves!
Não há, nenhum “depende...” a condicionar a transparência. Não existe o famoso, lamentável e onipresente “eu não sabia” ou a divisão permanente entre “público interno e externo”, rotineiros na ditadura militar e no lulopetismo.
O roubo público, o assalto irresponsável em escala bíblica e pornográfica aos bens coletivos e à Petrobras — símbolo de independência econômica que suicidou quem teve honra e foi incestuosamente agredida por quem não sabe o significado dessa palavra — continuam sujeito ao “depende...”
Depende de quem. Se foi do tempo deles vale, se foi nessa nossa década de poder, não vale. Na Alemanha nazista, todos os males eram atribuídos aos judeus vistos como agentes de impureza diante da superioridade indiscutível da raça germânica. Os judeus eram o veneno ao lado dos homossexuais, dos ciganos e dos deficientes. Eles conspurcavam a “raça superior” — emblemática de uma integração perfeita porque seria biológica, entre o indivíduo e a coletividade. Esse problema de todas as nossas antropologias e sociologias que, em geral, leem o individuo como algo separado do grupo quando de, fato, seja nas suas formas mais ativas (como na América sem tramelas) ou brandas, como no Brasil relacional das trancas e frestas, o individuo é a expressão de uma cosmologia ou ideologia. A redução individualista é dominante na vida moderna que, conforme sabem alguns, não é, como o jazz, tão moderna assim.
Sem o “depende” não se entende a hipocrisia política dominante. Ela é a chave que abre ou fecha os baús de escândalos que, de tão rotineiros, chegaram ao carnaval, uma celebração aberta a tudo, mas hoje manchada pelo financiamento questionável.
Todos nós admitíamos cinicamente o financiamento carnavalesco de estabelecidos “contraventores”. Notem que não usamos a palavra “bandido” para os que se legitimavam como mecenas das escolas de samba. Por meio do carnaval e do até hoje não legalizado jogo do bicho, eles eram nossos “heróis-bandidos” ou simplesmente malandros, dentro da ética de ambiguidade que proíbe ou torna reacionário dizer isso “não pode!” ou, o muito mais sério, “isso eu não faço!” Mas quando uma escola de samba tradicional é financiada por uma ditadura estrangeira, chegamos ao fundo do poço porque o “depende” tem desculpa: afinal é (ou era) carnaval.
Ao se despedir, o professor Richard Moneygrand riu de sua profecia segundo a qual o fim do carnaval, conforme revelei na semana passada, assinalava o fim da ordem brasileira. Mas até mesmo a ordem, para vocês, disse ele, depende...
O “depende”, em paralelo ao “desculpável”, é parte do nosso Direito fundado no purgatório. Se os extremos e os limites são evitados, como não aceder a filosófica admoestação de batedor de carteira da presidenta Dilma, quando afirma que se a Petrobras tivesse sido investigada no governo Fernando Henrique Cardoso, toda essa roubalheira teria sido evitada?
E por que não nesses 12 anos de PT? Mas isso seria o questionamento do cronista reacionário que publica mas não é ouvido porque a preferência “depende” de quem fala e não do que é dito.
28 de fevereiro de 2015
Roberto Damatta, O Globo
“O Brasil está na idade da tramela!”, dizia um grande intelectual. Tendo estudado nos Estados Unidos e lá, como dizia Monteiro Lobato, fora lapidado, pois jamais rejeitara o seu lado brasileiro (o qual foi, ironicamente, intensificado na convivência por contraste com o que, àquela época, chamava-se de “países adiantados”), ele era capaz de enxergar o que todo mundo simplesmente via como as nossas arqueológicas tramelas.
Quem saiu do Brasil para as “Europa” ou “América” até os anos 60 (como foi o meu caso), ficou espantado com a ausência das “tramelas” e das gigantescas chaves de ferro; esses instrumentos dos superiores que permitiam abrir ou fechar portas, cadeias, porões, dispensas e gavetas. Esses compartimentos que até hoje são vedados a quem continua a ser tratado como “povo”, pois jamais foi lapidado ou visto como cidadão.
Quando visitei os Estados Unidos pela primeira vez, recebi a chave não só do meu modesto escritório mas — eis o susto — a do prédio do famoso Departamento de Relações Sociais de Harvard!
No Brasil, receber essas máquinas “depende”.
O ministro tem a chave de todos os prédios e somente ele abre a sua porta. Nas democracias, todos têm precisamente a chave da porta dos que governam, já que presidentes, ministros, governadores, senadores e deputados servem ao povo. É, pois, do povo a propriedade das chaves!
Não há, nenhum “depende...” a condicionar a transparência. Não existe o famoso, lamentável e onipresente “eu não sabia” ou a divisão permanente entre “público interno e externo”, rotineiros na ditadura militar e no lulopetismo.
O roubo público, o assalto irresponsável em escala bíblica e pornográfica aos bens coletivos e à Petrobras — símbolo de independência econômica que suicidou quem teve honra e foi incestuosamente agredida por quem não sabe o significado dessa palavra — continuam sujeito ao “depende...”
Depende de quem. Se foi do tempo deles vale, se foi nessa nossa década de poder, não vale. Na Alemanha nazista, todos os males eram atribuídos aos judeus vistos como agentes de impureza diante da superioridade indiscutível da raça germânica. Os judeus eram o veneno ao lado dos homossexuais, dos ciganos e dos deficientes. Eles conspurcavam a “raça superior” — emblemática de uma integração perfeita porque seria biológica, entre o indivíduo e a coletividade. Esse problema de todas as nossas antropologias e sociologias que, em geral, leem o individuo como algo separado do grupo quando de, fato, seja nas suas formas mais ativas (como na América sem tramelas) ou brandas, como no Brasil relacional das trancas e frestas, o individuo é a expressão de uma cosmologia ou ideologia. A redução individualista é dominante na vida moderna que, conforme sabem alguns, não é, como o jazz, tão moderna assim.
Sem o “depende” não se entende a hipocrisia política dominante. Ela é a chave que abre ou fecha os baús de escândalos que, de tão rotineiros, chegaram ao carnaval, uma celebração aberta a tudo, mas hoje manchada pelo financiamento questionável.
Todos nós admitíamos cinicamente o financiamento carnavalesco de estabelecidos “contraventores”. Notem que não usamos a palavra “bandido” para os que se legitimavam como mecenas das escolas de samba. Por meio do carnaval e do até hoje não legalizado jogo do bicho, eles eram nossos “heróis-bandidos” ou simplesmente malandros, dentro da ética de ambiguidade que proíbe ou torna reacionário dizer isso “não pode!” ou, o muito mais sério, “isso eu não faço!” Mas quando uma escola de samba tradicional é financiada por uma ditadura estrangeira, chegamos ao fundo do poço porque o “depende” tem desculpa: afinal é (ou era) carnaval.
Ao se despedir, o professor Richard Moneygrand riu de sua profecia segundo a qual o fim do carnaval, conforme revelei na semana passada, assinalava o fim da ordem brasileira. Mas até mesmo a ordem, para vocês, disse ele, depende...
O “depende”, em paralelo ao “desculpável”, é parte do nosso Direito fundado no purgatório. Se os extremos e os limites são evitados, como não aceder a filosófica admoestação de batedor de carteira da presidenta Dilma, quando afirma que se a Petrobras tivesse sido investigada no governo Fernando Henrique Cardoso, toda essa roubalheira teria sido evitada?
E por que não nesses 12 anos de PT? Mas isso seria o questionamento do cronista reacionário que publica mas não é ouvido porque a preferência “depende” de quem fala e não do que é dito.
28 de fevereiro de 2015
Roberto Damatta, O Globo
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