Tenho assistido ao ótimo seriado “Dupla identidade” — sobre um psicopata, escrito por Gloria Perez (que já foi vitima de um deles). A série é muito bem dirigida e fotografada e tem atores excelentes como o protagonista, Luana Piovani, Débora Falabella, Marcello Novaes. E vejo que o personagem de Bruno Gagliasso nos fascina pelo mal. Parece até uma réplica daquele ”serial killer” de Goiás, jovem, bonito, que matou 39 moças.
Antigamente, nos romances, nos filmes, nos identificávamos com as vítimas; hoje, nos fascinamos com os malvados. Não torcemos mais pelos mocinhos — torcemos pelos bandidos. Quem nos fascina são os filhos da p... Por quê?
Sempre houve psicopatas e seus crimes. Só no século XX, duas guerras, holocausto, Hiroshima e Nagasaki, terrorismo, tudo causado pela ausência de sentimento de culpa e pelo prazer do “inominável”.
Não estou sendo psicologista, mas a psicopatia — para além das causas políticas e econômicas — é a base dos líderes implacáveis e assassinos.
Hoje a psicopatia é mais “descentralizada”. Não tem a massiva lógica “fordista” da era industrial. Agora, no pós-tudo, o mal se dissemina, alastra-se em ilhas de comportamentos já “aceitáveis”. Os psicopatas estão na moda. Vai desde os degoladores do Estado Islâmico até o sujeito que mata para roubar um tênis ou ainda para os ladrões da PTbras, os chamados psicopatas “revolucionários”. Agora, a psicopatia é o “hype” do mal.
Dentro de casa, vivemos uma democracia de massas com o gigantesco aluvião de corrupção. Os corruptos também possuem “dupla identidade.” Falam em honra “ilibada“ e roubam bilhões. O que estamos vendo é o desvelamento de uma farsa que nos assola há séculos, pelo menos desde Tomé de Souza, que, ao fundar Salvador em 1549, roubou tanto que quase quebrou Portugal.
Com a crise das utopias, com a exposição brutal de um escândalo por dia, somos levados a endurecer o coração, endurecer os olhos, em busca de um funcionamento que pareça aos outros “normal”, “comercial” ou seremos descartados, tirados “de linha”, como carros velhos.
A propaganda e o “espírito do tempo” estimulam a “beleza” do narcisismo. Isso leva à vaidade e a um egoísmo desabrido que evolui para a psicopatia. Somos hoje “freelancers” sem limites morais e conquistamos uma liberdade para nada, para o exercício de um charme ilusório, uma subjetividade transformada em produto de mercado.
Com a desmoralização da política e da lei no mundo todo, vão se parindo legiões de psicopatas, disfarçados de competentes ou vitoriosos. Já houve a época da histeria, do romantismo utópico onipotente, da paranoia do entre-guerras. Hoje, temos o psicopata. E veio para ficar. Eles encarnam a vida moderna.. Como acreditar em harmonia futura, em bom senso, em arte, depois dessa revolução da boçalidade bruta?
O psicopata pós-moderno, light, não faz picadinho de ninguém; no entanto, tem as mesmas molas que movem o esquartejador. Ele não é nervoso ou inseguro. Parece muito sadio e simpático. Ele em geral tem encanto e inteligência. E é muito difícil reconhecer o psicopata. Há uma frase que os define assim: “Os ratos são mais felizes que as vítimas do psicopata. Ao menos os ratos sabem ‘quem’ são os gatos.”
Questionado ou flagrado, o psicopata não se responsabiliza por suas ações, sempre se achando inocente ou “vítima” do mundo, do qual tem de se vingar. Ele não sente remorso ou vergonha do que faz (o que nos dá uma secreta inveja). Ele mente compulsivamente, muitas vezes acreditando na própria mentira, para conseguir poder. Não tem capacidade de olhar para dentro de si mesmo. Não tem “insights” nem aprende com a experiência, simplesmente porque acha que não tem nada a aprender.
E esse comportamento está deixando de ser uma exceção. A velha luta pela ética, pela solidariedade já é uma batalha vã. Muita bondade está ficando ingênua, babaca, ridícula.
Os resíduos de uma ética só existem para discursos demagógicos e impotentes. Nada impede a predação dos dinheiros públicos, porque o “público” não existe mais. Não há mais um limite para escândalos e crimes. Só nos resta o fraco recurso dos direitos humanos.
Mas o que é o “humano” hoje? O “humano” está virando um lugar-comum para uma “bondadezinha” submissa, politicamente correta, uma tarefa inócua para ONGs.
Que nos acontecerá? Ou melhor, haverá “acontecimentos” ainda, ou os fatos vão se dissolver no mar morto do futuro? As coisas, que já mandam no mundo, vão acelerar sua tirania. Está sendo criada uma “epi-natureza” onde o homem terá projetos que fugirão sempre de seu controle. Será o tempo da deliciosa “reificação”, quando seremos talvez felizes como “coisas”.
Surgiu a era da insolubilidade. Os processos normais, com início, meio e fim, desmoronaram. Com a chegada da desesperança, surge o fatalismo e a irresponsabilidade, pois o mundo é considerado algo irremediável.
Haverá o fim da compaixão e as populações miseráveis ou desnecessárias ao mercado serão eliminadas, sob os protestos inaudíveis de humanistas fora de moda. Precisamos de uma forma nova de “transcendência”, abolida pelo consenso tecnocientífico; uma nova liberdade se tornou urgente, a liberdade de “não” ser moderno.
O poeta e pensador Paul Valéry escreveu: “A desordem do mundo atual nos habitua intimamente a ela; nós a vivemos, nós a respiramos, nós a criamos e ela acaba por ser uma verdadeira necessidade nossa. Nós encontramos a desordem à nossa volta e dentro de nós mesmos, nos jornais, nos dias e noites, em nossas atitudes, nos prazeres, até em nosso saber.”
Somos máquinas desejantes que mudamos de acordo com o tempo e a necessidade.
Antes, os psicopatas tocavam num mistério que não queríamos conhecer.
Hoje, estamos vendo que essa antiga doença vai ser uma “virtude” que está a caminho. Teremos talvez de ficar como eles para sobreviver. Os psicopatas são o nosso futuro.
30 de novembro de 2014
Arnaldo Jabor é Cineasta e Jornalista. Originalmente publicado em O Globo em 25 de novembro de 2014.
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