Nos períodos imediatamente anteriores e posteriores à guerra no Iraque, muita tinta foi gasta sobre o tema dos neoconservadores e da sua alegada conquista do governo Bush. A história é fascinante porque parece revelar um lado conspiratório do comportamento do governo.
Muitos comentaristas salientaram o fato de que vários proeminentes partidários da guerra com o Iraque, como Paul Wolfowitz, Douglas Feith e Richard Perle, são judeus e argumentaram que a política com relação ao Iraque foi basicamente concebida para tornar o Oriente Médio seguro para Israel.
Talvez não seja uma surpresa o fato de alguns neoconservadores terem reagido dizendo que, na boca de seus críticos, neoconservador é um codinome para judeu, uma vez que a alegada conquista dos políticos americanos é muito semelhante ao tipo de conspiração da qual os judeus foram acusados na história do anti-semitismo.
O neoconservadorismo é um conjunto coerente de idéias, argumentos e conclusões oriundos da experiência, que devem ser julgados com base na identidade étnica ou religiosa daqueles que adotam essas idéias. Não faz sentido negar a existência desse movimento, uma vez que dois dos padrinhos do neoconservadorismo, Irving Kristol e Norman Podhoretz, escreveram, muito antes da guerra do Iraque, ensaios sobre o que era o neoconservadorismo e exploraram áreas de acordo e desacordo entre as várias pessoas que se identificaram como neoconservadoras[¹].
Aqueles que afirmam que o neoconservadorismo não existe salientam o fato de não haver uma “doutrina” neoconservadora estabelecida, como foi o caso, por exemplo, do marxismo-leninismo, e observam as discordâncias e contradições que existem entre neoconservadores independentes.
As origens do neoconservadorismo estão em um grupo notável de intelectuais, em sua maioria judeus, que estudaram no City College of New York (CCNY) na segunda metade da década de 1930 e no início da década de 1940, que incluía Irving Kristol, Daniel Bell, Irving Howe, Seymour Martin Lipser, Philip Selznick, Nathan Glkazer e, pouco depois, Daniel Patrick Moynihan. Todos vieram da classe trabalhadora, eram descendentes de imigrantes e estudaram no CCNY porque instituições de elite, como Columbia e Harvard eram praticamente vedadas a eles. Aquele período, como hoje, era de imensa crise na política mundial e o grupo do CCNY era totalmente politizado e comprometido com a esquerda. Hoje conhecemos bem a história do Reservado 1 do refeitório do CCNY, que era trotskista, e do Reservado 2, que era stalinista, bem como o namoro inicial de Irving Kristol com o primeiro.
Contudo, a herança mais importante do grupo do CCNY foi um intenso anticomunismo e uma aversão quase semelhante pelos liberais que simpatizavam com o comunismo e não conseguiam ver o mal que ele representava.
O anticomunismo da esquerda desiludida é diferente daquele da direita americana tradicional. Esta se opunha ao comunismo porque ele era ateu, ligado a uma potência estrangeira hostil e contrário ao livre mercado. Já a esquerda anticomunista simpatizava com os objetivos sociais e econômicos do comunismo, mas no decorrer dos anos 1930 e 1940 compreendeu que o “socialismo real” havia se tornado uma monstruosidade de conseqüências imprevisíveis que solaparam completamente as metas que defendia.
Embora praticamente todo o grupo do CCNY tenha deixado de ser marxista na época da II Guerra Mundial, variaram a ocasião e as mudanças para a direita. A mudança para a direita tornou-se inevitável, não apenas devido às revelações a respeito da natureza do terror stalinista que vazavam lentamente da URSS, mas também porque os Estados Unidos, uma nação capitalista, intervieram contra a Alemanha nazista e desempenharam um papel importante na sua derrota e também na do Japão.
No entanto, ao final dos anos 1960, a oposição à Guerra do Vietnã deu origem a uma geração de esquerdistas americanos que simpatizavam com os regimes comunistas ou marxistas de Havana, Hanói, Pequim e Manágua.
Voltando aos neoconservadores: para eles, o verdadeiro caminho para a servidão está nos esforços de elites libertárias e de esquerda para decretar uma política social antidemocrática, em nome da liberdade, que não passa de uma liberdade estreita e privatizada.
Os regimes que tratam de forma injusta seus próprios cidadãos provavelmente farão o mesmo com os cidadãos estrangeiros. Assim, os esforços para mudar o comportamento de regimes tirânicos ou totalitários por meio de recompensas ou punições externas sempre será menos eficaz do que mudar a natureza subjacente do regime.
Antes de 1989, a Polônia, a Hungria e a Checoslováquia eram regimes comunistas e membros do Pacto de Varsóvia. A ameaça que esses países representavam para a Europa Ocidental foi reduzida, não por acordos para o controle de armas como as negociações para a redução de forças convencionais na Europa, mas mediante sua transformação em democracias liberais.
As mudanças no Afeganistão e no Iraque constituem as melhores garantias de que esses países não irão ameaçar os EUA ou os vizinhos, como faziam o Talibã e Saddam Hussein. A tirania de Saddam Hussein gerou passividade, fatalismo, crueldade e violência, ao passo que um Iraque democrático presumivelmente promoverá maior autoconfiança individual.
Todavia, a fundação de uma nova ordem política é uma atividade difícil, ainda mais para aqueles que não estão imersos nos hábitos, costumes e tradições daquelas pessoas para as quais está legislando. Historicamente, poucos administradores americanos em além-mar – com a possível exceção de Douglas MacArthur – demonstraram aptidão para esse tipo de trabalho. Eles tendem a levar a experiência americana para terras estrangeiras, em vez de verem as instituições surgirem dos hábitos e da experiência dos habitantes locais.
Da Guerra do Golfo em diante, o povo americano passou a assistir a vídeos de bombas zunindo na direção de seus alvos e explodindo determinados edifícios ou veículos. A Munição de Ataque Direto Conjunto (JDAMs), que transformou bombas “burras” em armas de precisão, tornou-se a base da guerra afegã. Esses acontecimentos, além da revolução paralela na tecnologia de informação e de comunicações, possibilitaram uma ampla transformação na maneira de fazer a guerra.
A mudança no sentido de uma forma de combate mais leve, rápida e móvel, fortemente promovida pelo Secretário de Defesa Donald Rumsfeld como uma “transformação” militar, criou um senso de que a guerra custaria pouco do ponto de vista das baixas americanas. A Guerra do Golfo de 1991 produziu menos de 200 mortes em combate, e as numerosas pequenas intervenções do governo Clinton em lugares como Haiti e Bósnia culminaram na guerra do Kosovo, na qual nenhum militar americano morreu.
O sucesso da tecnologia militar americana durante a década de 1990 criou a ilusão de que as intervenções militares seriam sempre limpas ou baratas, como as guerras do Golfo ou do Kosovo. A guerra do Iraque está demonstrando claramente os limites dessa forma leve e móvel de combate: ela pode derrotar praticamente qualquer força militar convencional existente, mas não oferece nenhuma vantagem especial no caso de uma insurreição prolongada. JDAMs e mísseis antitanque teleguiados não podem distinguir entre insurgentes e não-combatentes, nem ajudar um soldado a falar em árabe.
George W. Bush, na época em que tomou posse pela segunda vez, havia passado a aceitar grande parte do programa neoconservador como, no mínimo, uma moldura retórica para seu novo mandato. Ele nada disse a respeito do terrorismo e pouco a respeito de segurança, falando em vez disso da universalidade dos valores democráticos (“Finalmente o chamado da liberdade chega a todas as mentes e almas”). Ele ligou o regime interno ao comportamento externo (declarando que a democracia “é a exigência urgente da segurança da nossa nação”) e observando que “a sobrevivência da liberdade em nossa terra depende cada vez mais do sucesso da liberdade em outras terras”.
O problema para o segundo mandato de Bush é que as políticas adotadas no primeiro mandato geraram tanta hostilidade contra seu governo, que ele conseguiu desacreditar o excelente programa de promoção da democracia antes mesmo de chegar a ele. Seu esforço, a posteriori, para justificar uma guerra preventiva em termos idealistas, fez com que muitos críticos simplesmente desejassem o contrário de qualquer coisa que ele quisesse.
Finalmente, é possível extrair quatro princípios ou temas básicos que caracterizam o pensamento neoconservador:
- a crença de que o caráter interno do regime tem importância e que a política externa deve refletir os valores mais profundos das sociedades liberais democráticas;
- a crença de que o poder americano tem sido e pode ser usado para fins morais e que os EUA precisam permanecer envolvidos nos assuntos internacionais (...), pois, como potência dominante no mundo, têm responsabilidades especiais na área da segurança. Isso foi verdade nos Bálcãs nos anos 1990, como foi na II Guerra Mundial;
- a desconfiança em relação a projetos ambiciosos de engenharia social, o que é um tema consistente no pensamento neoconservador, que liga a crítica ao stalinismo nos anos 1940 ao ceticismo da revista The Public Interest com relação ao programa Grande Sociedade de Lyndon Johnson nos anos 1960;
- e por fim, o ceticismo a respeito da legitimidade e da eficácia das leis e instituições internacionais para conseguir segurança ou justiça (...) As leis, para os neoconservadores, são fracas demais para fazer cumprir as regras e coibir agressões. Eles têm criticado muito a atuação da ONU, seja como árbitro ou agente da justiça internacional, bem como iniciativas internacionais como o Protocolo de Kioto e o Tribunal Criminal Internacional, mas não ofereceram alternativas que legitimem e ampliem a eficácia da ação americana no mundo.
O texto acima é a reprodução resumida das páginas 24 a 71 do livro O Dilema Americano, de Francis Fukuyama, editora Rocco, 2006.
NOTA:
1. Irving Kristol, Reflections of a Neoconservative: Looking Back, Looking Ahed, New York, Basic, 1983; Kristol, Neoconservatism: The Autobiography of an Idea, New York, Free Press, ‘995; Norman Podhoretz, Neoconservatism: A Eulogy, em The Norma PodhoretzReader, New York, Free Press, 2004.
20 de setembro de 2014
Carlos I. S. Azambuja é Historiador.
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