Do ponto de vista ético, há situações que se situam no limite entre o lícito e o inadmissível. O médico, por exemplo. Prepara-se durante anos para curar doenças e salvar vidas. Um belo dia, diante de um paciente terminal atormentado por sofrimento insuportável, vê-se em postura delicada.
Os estudos e o tirocínio fizeram dele um salvador, um resgatador de vidas ameaçadas. No entanto, o caso de um paciente terminal sem esperança de cura é diferente. Caberá ao médico, à contracorrente do que dele normalmente se espera, contribuir para a extinção da vida? Daquela vida que ele, médico, se preparou para amparar e preservar?
É um dilema complexo que roça a medicina, a filosofia, o direito, a religião. Nossa sociedade ainda está longe de chegar a consenso. Seja qual for a decisão do legislador, certo é que desagradará ampla parcela da população.
Um outro caso me ocorre que, embora não envolva decisão de vida ou morte, situa-se também no limbo que separa o admissível do insuportável. É o conceito dito de «delação premiada», atualmente na crista da onda.
Todo agrupamento tem suas regras, escritas ou não. Toda família tem segredos ― que não devem ser revelados aos de fora. Toda sociedade comercial tem sua estratégia ― que não deve ser divulgada por nenhum membro, nem mesmo depois de ter deixado o emprego. Todo Estado tem uma parcela de confidencialidade ― que deve permanecer ad aeternum ao abrigo de olhares indiscretos. Todo aquele que, apartado do grupo, se puser a dar com a língua nos dentes estará traindo o juramento e renegando a ética.
Nosso ordenamento jurídico tem reconhecido, com frequência crescente, o instituto da «delação premiada», expressão infeliz. A própria palavra delatar carrega senso pejorativo. Quem delata é traidor. Joaquim Silvério dos Reis e Domingos Fernandes Calabar passaram à História Oficial do Brasil como traidores justamente por terem delatado ao adversário atividades de parceiros confiantes.
Não há como negar que a delação trazida por desertor de um grupo criminoso ajuda a desmantelar a quadrilha. Visto assim, o delator se aproxima da figura do herói salutar e proveitoso à nação. Por outro lado, o delator será sempre o alcaguete, o dedo-duro, aquele traidor que quebrou, em benefício próprio, o elo de confiança que o unia ao bando.
É, de novo, um dilema complicado. Trair os sócios é feio, mas se for em benefício da sociedade maior é desculpável. Como ensinar isso às crianças? Não tenho a resposta. Modificar o nome da coisa já seria um bom começo. Em vez de «delação premiada», expressão paradoxal em que os dois elementos se excluem, por que não dizer «delação interessada»?
Mais vale dar a cada boi o nome que merece.
Observação:
J’accuse…! ― Eu acuso…! ― é o título de artigo publicado em 1898 por Émile Zola, escritor francês. O autor, naquela carta aberta dirigida ao presidente da República Francesa, se posicionava num caso judiciário complicadíssimo que sacudia consciências. O caso envolvia um oficial do estado-maior do Exército, de origem judia, que tinha sido condenado por alta traição ao cabo de um processo ressentido por muitos como antissemita.
J’accuse…! ― Eu acuso…! ― é o título de artigo publicado em 1898 por Émile Zola, escritor francês. O autor, naquela carta aberta dirigida ao presidente da República Francesa, se posicionava num caso judiciário complicadíssimo que sacudia consciências. O caso envolvia um oficial do estado-maior do Exército, de origem judia, que tinha sido condenado por alta traição ao cabo de um processo ressentido por muitos como antissemita.
28 de setembro de 2014
José Horta Manzano
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