Em O hotel às margens do rio, do sul-coreano Hong Sang-soo, a delicadeza da gravura oriental. No sonegar de imagens, um convite a imaginação. Em um dia na vida dos personagens, a alvura que tudo iguala: da Natureza aos amores despedaçados…
29 de maio de 2020
Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema
Nestes tempos de quarentena, as plataformas de streaming têm oferecido uma infinidade de novas séries e de velhos clássicos. Mais raros são os bons filmes inéditos em nossos cinemas, como é o caso agora de O hotel às margens do rio, do sul-coreano Hong Sang-soo, lançado pelo Belas Artes à la Carte. É uma pequena e preciosa joia, só exibida no Brasil na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo do ano passado.
Se ainda tem algum sentido a distinção que Pasolini fazia entre
“cinema de prosa” e “cinema de poesia”, podemos dizer que Sang-soo,
especialmente aqui, transita na fronteira entre os dois, ou opera uma
sedutora combinação de ambos.
Brancura e melancolia
Ambientado,
como diz o título, num hotel à beira do rio Han, o filme se concentra
em um dia e uma noite na vida de uns poucos personagens. Um velho poeta
solitário (Gi Joo-bong) recebe ali a visita dos dois filhos (Kwon
Hae-hyo e Yoo Joon-Sang) e trava contato superficial com outra hóspede
(Kim Min-hee), que por sua vez é visitada por uma amiga (Song Seon-mi). É
um dia frio de inverno, e o delicado preto-e-branco enfatiza a brancura
da neve e sua melancolia.
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A primeira cena nos mostra o poeta em
seu quarto modesto. Ele se levanta da cama, como se tivesse sido
acordado pelo sol que entra pela janela, caminha até a pequena sacada,
olha para fora e vê uma jovem sozinha. Comenta consigo mesmo que está
frio e que a moça machucou a mão. Atende o celular e conversa com
pessoas que estão chegando para visitá-lo. São seus filhos, mas ainda
não sabemos, assim como não sabemos nada sobre a moça avistada do alto.
Nesses
poucos minutos aparecem, ainda em estado de potência, os três núcleos
em que a narrativa vai se desenvolver: o poeta; os filhos; a outra
hóspede e sua amiga. Essas linhas seguem em paralelo, ocasionalmente se
tocam e só vão se emaranhar à noite, no final do relato.
Até lá,
Hong Sang-soo vai nos deixando conhecer suas criaturas aos poucos, por
fragmentos e sugestões que revelam sua índole, seu passado, seus
desejos. Como em outros filmes seus, ele incita a curiosidade e a
imaginação do espectador ao lhe sonegar certas imagens e informações.
Por exemplo, a moça que chega para visitar a amiga hóspede inspeciona o
interior de um grande carro estacionado diante do hotel. Esperamos,
quase instintivamente, o contracampo que mostraria o que ela está vendo.
Mas ele não vem, e só muito mais tarde saberemos o que ela viu dentro
do carro e o que fez em seguida.
O procedimento se repete com
fotos e escritos que só os personagens veem, e nós não. Essa recusa
sistemática do contracampo, além de suscitar a participação ativa do
espectador, instigando-o a ir além do que está vendo, cria um andamento
dramático de ritmo mais poético do que propriamente narrativo.
Se
há coisas que os personagens sabem e nós ignoramos, o inverso também
acontece, o que torna o jogo mais estimulante. Nessa dialética entre o
mostrar e o esconder, vamos construindo aos poucos as histórias dos
personagens, que têm, como fio comum, dolorosos relacionamentos amorosos
e suas consequências.
Duas mentes, lado a lado
Talvez
a melhor definição da alquimia entre poesia e prosa esteja no interior
do próprio filme, quando o poeta explica ao filho mais novo o
significado de seu nome (Byung-soo). Diz ele que se trata de “duas
mentes, lado a lado”: uma que “sente o paraíso” e a outra que “anda
pelas ruas”. A primeira tem a ver com um sentimento poético do mundo, da
presença do paraíso em todas as coisas. A segunda, com a necessidade de
aprender a ser humano, a caminhar entre humanos, “para que eles não te
matem”.
O olhar do cineasta sobre o mundo parece combinar as duas
coisas. As imagens ajudam a “contar a história”, a explicar as
criaturas e suas ações, mas também encerram uma materialidade
irredutível, uma “presença do paraíso” difícil de definir.
Num
plano bem aberto, vemos ao longe as duas amigas conversando numa
paisagem coberta pela neve. O branco iguala tudo: margem, rio,
construções, e só se destacam as silhuetas das duas e de uma árvore com
seus galhos secos, num grafismo quase de gravura oriental. A conversa
ajuda a conhecer as duas e fazer o relato avançar, mas a imagem
permanece como um valor em si, um signo de solidão, melancolia, tempo
cíclico e tudo mais que ela possa sugerir. O mesmo diálogo cumpriria, em
outro cenário, a mesma função narrativa. Mas o filme seria outro.
Espontaneidade construída
Outra
característica do cinema do diretor é a impressão de espontaneidade, de
improviso, de abertura ao acaso, à “respiração” do ambiente. A certa
altura, o filho mais novo do poeta sai por uma porta de vidro do hotel e
anda por um caminho estreito entre canteiros, ao fim do qual ele vira
para um dos lados e sai de cena. A câmera imóvel registra esse seu
movimento até o fim, mas aí entra em quadro um gato, que percorre o
mesmo caminho e no final, depois de hesitar, toma o sentido oposto.
Talvez
tenha sido uma cena exaustivamente ensaiada e repetida, inclusive com o
gato, ou talvez este tenha entrado inesperadamente. Não sabemos. O fato
é que a câmera deu tanto valor ao gato quanto ao personagem – aliás,
até mais, porque há um zoom que nos aproxima do bichano a certa altura,
privilégio que não coube ao ator.
Dessas pequenas delicadezas se constrói um olhar autoral, um estilo, uma poética. Depois de títulos marcantes como Certo agora, errado antes, Na praia à noite sozinha, A câmera de Claire e O dia depois, todos realizados nos últimos cinco anos, O hotel às margens do rio confirma Hong Sang-soo como um dos grandes poetas do cinema de nosso tempo.
José Geraldo Couto
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