"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

domingo, 16 de novembro de 2014

A REVOLUÇÃO QUE NÃO VEIO

 


 
"As esquerdas radicais se lançaram na luta contra a ditadura, não porque a gente queria uma democracia, mas para instaurar o socialismo no país por meio de uma ditadura revolucionária, como existia na China e em Cuba. Mas, evidentemente, elas falavam em resistência, palavra muito mais simpática, mobilizadora, aglutinadora. Isso é um ensinamento que vem dos clássicos sobre a guerra (...) Falava-se em cortar cabeças, essas palavras não eram metáforas. Se as esquerdas tomassem o poder, haveria, provavelmente, a resistência das direitas e poderia acontecer um confronto de grandes proporções no Brasil. Pior, haveria o que há sempre nesses processos e no coroamento deles: fuzilamentos e cabeças cortadas” 
 
(Daniel Aarão Reis Filho - professor de História da UFF, ex-guerrilheiro dirigente do MR-8 e ex-banido; recebeu treinamento de guerrilha em Cuba - O Globo, 29 de março de 2004).
 
O texto a seguir é um depoimento importante e, sobretudo, insuspeito, pois foi extraído do livro “Imagens da Revolução”, editado em 1985, escrito por dois dirigentes de organizações revolucionárias: Daniel Aarão Reis Filho (dirigente do Movimento Revolucionário Oito de Outubro) e Jair Ferreira de Sá (dirigente da Ação Popular), organizações que – paralelamente a, pelo menos, outras 21, todas abordadas resumidamente no livro - se propuseram a dirigir as lutas sociais e políticas do “povo brasileiro”, encaminhando-as no sentido da “liquidação da exploração social, da dominação do capital internacional e da construção de uma sociedade socialista”.
 
Todas foram dizimadas nos chamados “anos de chumbo”, fato que o revanchismo não perdoa.
 
Os autores do livro foram formados militarmente no exterior: Daniel Aarão Reis Filho recebeu treinamento em Cuba sob o codinome de “Faustino”, em 1970/1971, e Jair Ferreira de Sá cursou a Academia Militar de Pequim em 1967, sob o codinome de “Dorival”. Eis um trecho do texto:
 
“A derrota de 1964 não destruiu apenas esquemas, sonhos e partidos. Cortou carreiras políticas, interrompeu projetos de vida. A grande massa dos que militavam antes de 1964 quedou-se perplexa, desorientada, desmoralizada e simplesmente retirou-se, pegou o boné, desistiu, ao menos temporariamente. Os que haviam começado em 1963, 1964, viram-se, subitamente, com responsabilidades de direção.
 
A clandestinidade dificultava a realização de congressos e reuniões, o ritmo desigual das lutas internas e a constituição em cada organização ou partido, de microcentros de poder desinteressados em processos de reunificação que poderiam pôr em risco suas posições. Tudo isso levou água à fragmentação orgânica da Nova Esquerda, como foi referida a esquerda surgida após 1964, por ter rompido com aspectos essenciais da política até então implementada pelo PCB. 
 
Em lugar do entendimento e da conciliação com frações das classes dominantes, a desconfiança, a declaração de guerra à burguesia, suas instituições, partidos e políticos, pois a maioria dos grupos concluiu pela absoluta falta de vocação revolucionária da burguesia brasileira, considerada um mito pelos partidários das reformas de base.
 
No entanto, essa fragmentação orgânica acabou impondo um resultado positivo: a derrubada do mito do monolitismo da representação política das classes populares, ou seja, a derrota do mito do partido único, conceito que prepara e justifica a ditadura política contra o povo, embora exercida em seu nome, que é o que se tem visto nos processo de construção do socialismo.
 
Como conseqüência, a descrença no caminho pacífico, na possibilidade de reformas e a proposição da luta armada e da destruição das instituições burguesas, das formas de representação política tradicionais, do aparelho judiciário e das Forças Armadas. A Nova Esquerda queria a liquidação como classe dos senhores da terra, dos grandes empresários associados ao capital internacional e a expropriação completa deste último. Ou seja, tinha como tarefas imediatas, para um presente visível, o que o PCB considerava como objetivos últimos, para um indefinido futuro. A associação da derrota de 1964 aos ‘erros’ do PCB também caracterizaria a Nova Esquerda, conduzindo-a, por isso mesmo, ao desprezo e à negação das experiências anteriores de luta.
 
A Nova Esquerda ainda se diferenciaria pela reivindicação dos novos modelos revolucionários internacionais. A revolução cubana, desde 1959, fascinava as vanguardas políticas de todo o continente. Os cubanos haviam provado que era possível destruir a burguesia e o capitalismo nas barbas do imperialismo mais forte do mundo. E que só era possível fazê-lo recorrendo à luta armada.
 
A revolução chinesa influenciaria igualmente os troncos formados a partir do PC do B e da AP. O quadro completava-se com a inspiração trazida pela luta de libertação nacional do Vietnã.
 
Assim, os fatos pareciam indicar que tudo era possível, desde que houvesse disposição de luta.
 
Também o exemplo da insurreição de Petrogrado não foi esquecido. A Organização Revolucionária Marxista-Política Operária – conhecida como POLOP – e a Organização Comunista 1º de Maio, entre outras, continuavam reivindicando as lições do outubro vermelho na Rússia. Todavia, no conjunto, a história da revolução russa passara a um plano secundário ante as experiências cubana, chinesa e vietnamita.
 
A Nova Esquerda também ressuscitou o quadro político profissional, dedicado 24 horas à revolução, o igualitarismo entre dirigentes e dirigidos e a atenuação das hierarquias e, sobretudo, a moral de ofensiva retilínea, não sujeita a recuos. A luta poderia ser difícil, longa e perigosa, mas o caminho estava traçado e os revolucionários deveriam preparar-se não mais para morrer heroicamente nas masmorras do poder, mas para matar em busca da vitória.
 
Todavia, nas reflexões da Nova Esquerda há uma dupla herança do PCB. De um lado, mais visível, a idéia de que o capitalismo no Brasil não tinha saídas. Tratava-se de uma tese central dos IV e V Congressos do PCB, em 1954 e 1960. Argumentava-se que o imperialismo norte-americano e o latifúndio constituíam entraves intransponíveis ao progresso das forças produtivas. Em 1954 o PCB recomendou a remoção à força. Mas a partir de 1958, mantendo-se, embora, em grandes linhas, a definição da revolução democrática e nacional, optaria pelo caminho pacífico.
 
O outro lado da herança está na base teórica desses raciocínios políticos: a idéia de que o sentido, a dinâmica e o ritmo da luta de classes fluem mecanicamente da evolução do modo de produção e de suas crises. Em decorrência, a caracterização da crise econômica forneceria as chaves para a conclusão da crise política e da explosão social. O outro aspecto, ainda mais enraizado no conjunto da Nova Esquerda, era dado pela visão catastrófica – o capital agoniza – e teleológica do processo geral da luta de classes – a História tem um fim, o mundo marcha para o socialismo.
 
Aqui, todavia, a responsabilidade não é mais do PCB, porque tais fundamentos provêm das fontes marxistas e leninistas, ainda que fosse possível dizer – como nos bons tempos da III Internacional – que a teoria permanece válida, a aplicação dela à realidade é que foi infeliz. Todavia, nada há de paradoxal nessas semelhanças, pois elas provêm de universos teóricos comuns – o marxismo, o leninismo – embora certos setores da Nova Esquerda conferissem maior importância a Stalin e a Mao-Tsetung ou a Che Guevara e Regis Debray.
 
Ainda assim, não é por ler Mao-Tsetung, Guevara e Debray que a Nova Esquerda chega à conclusão da necessidade da luta armada. Verifica-se exatamente o inverso: a Nova Esquerda vai buscar em Mao, Guevara e Debray a legitimidade teórica de que precisava para lançar-se à luta armada. Nesse sentido, a Nova Esquerda diferencia-se do PCB quanto aos modelos internacionais legitimadores.
 
Finalmente, nesta relação não exaustiva de semelhanças e continuidades, seria impossível deixar de mencionar o fato de que os intelectuais de classe média – homens e brancos – representaram a grande fonte de quadros dirigentes de todas as organizações e partidos clandestinos e as campanhas de integração na produção, por mais severas, intentadas por várias organizações em diferentes momentos e situações, não conseguiram alterar esse panorama que, evidentemente, condicionaria, em grande medida, a produção política.

Enfim, a Nova Esquerda marcou o cenário político nacional com suas características originais mas, como não poderia deixar de acontecer, pagou o inevitável tributo ao
tempo histórico em que viveu e ao país em que surgiu”.
16 de novembro de 2014
Carlos I. S. Azambuja é Historiador.
 

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