Um fenômeno está varrendo o pensamento econômico contemporâneo. Como há muito tempo não se via, um livro está provocando uma tempestade de debates nos países mais ricos do mundo, especialmente nos Estados Unidos, e as ondas devem chegar em breve a todas as partes do mundo, inclusive ao Brasil.
Trata-se de “O Capital no Século XXI”, do economista francês Thomas Piketty, de 42 anos, que nas últimas semanas vem sendo comparado a Marx, Keynes, Tocqueville, com seu livro de quase 700 páginas na tradução inglesa (incluindo índice, tabelas e ilustrações) alcançando o primeiro lugar de venda da Amazon, e sendo comparado aos grandes clássicos dos fundadores da Economia (inclusive O Capital, de Marx, ao qual o título faz alusão).
O sucesso é tanto que a imprensa americana vem descrevendo a viagem do autor pelos Estados Unidos como um tour de rock star, em que palestras acadêmicas normalmente sonolentas transformam-se em eventos de forte excitamento, com pessoas acumulando-se pelos cantos, lutando para entrar na sala e telões instalados para os que ficaram de fora.
Parecem ser duas as razões para o sucesso estrondoso de Piketty e seu livro. O primeiro é que o tema central é a desigualdade, que se transformou na grande questão dos países ricos depois da crise global de 2008 e 2009.
O segundo motivo é que Piketty não é mais um filósofo ou intelectual de humanas pouco versado em números tecendo vociferações retóricas ou elucubrações incompreensíveis contra as injustiças e opressões do mundo. Na verdade, o francês é um economista com forte base matemática, que foi professor do Massachusetts Institute of Technology (MIT) entre 1993 e 1995. Além disso, seu livro é em grande medida baseado num trabalho (em equipe) maciço e exaustivo ao longo de 15 anos, de levantamento de bases de dados sobre riqueza e renda em diversos países, em boa parte a partir de fontes tributárias.
Em outras palavras, o autor de “O Capital no Século XXI” não pode ser descartado como alguém “que não sabe fazer contas”, como os economistas mais bem preparados costumam se referir (várias vezes com razão) aos que “contestam o sistema” apenas com argumentos emocionais.
A tese central do livro, a esta altura já bastante conhecida e divulgada, é que o capitalismo tende, sim, a aumentar a desigualdade, porque os rendimentos do capital crescem mais do que o PIB, que é o parâmetro para a tendência de expansão da renda do trabalho. Assim, por mais que os trabalhadores labutem, a sua renda ficará progressivamente defasada em relação à riqueza dos capitalistas, muito dos quais simplesmente herdaram suas fortunas.
Evidentemente, o livro trata de muitos outros temas, como as super remunerações dos executivos americanos, para as quais Piketty não enxerga fundamento em termos de produção de valor econômico equivalente. Um charme extra do livro são digressões sobre desigualdade e heranças, a partir de fontes literárias como Honoré de Balzac e Jane Austen.
Piketty também busca mostrar como a queda da desigualdade nas economias mais avançadas em meados do século passado foi um acidente de percurso, causado por grande destruição de riqueza no topo da distribuição em função de episódios históricos como a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial. A partir dos anos 80, porém, a lógica básica do capitalismo se reinstalou, e a desigualdade voltou a crescer.
Piketty propõe, como solução para o problema por ele indicado, aumento da progressividade dos impostos e uma tributação global sobre a riqueza.
Apesar da aclamação como um livro com fôlego de clássico, o que é reconhecido mesmo pelos que discordam das teses de Piketty, “O Capital no Século XXI” está longe de ter se tornado uma unanimidade. Como seria de esperar, os muitos dados, interpretações e teses do trabalho estão sendo contestados e discutidos acirradamente. Não há dúvida, porém, de que o livro mudou a configuração do debate econômico atual, em cujo centro permanecerá por muito tempo.
Brasil
No Brasil, um país que na verdade reduziu notavelmente a desigualdade de renda ao longo de quase 15 anos, será curioso observar o impacto de O Capital no Século XXI e seus possíveis efeitos na discussão eleitoral.
Um fato que chama a atenção é que a distribuição no Brasil melhorou por razões que não estão no centro dos debates provocados pelo livro de Piketty. Aqui, a queda da desigualdade esteve ligada a aumento da formalização, elevação do salário mínimo, massificação de programas sociais e melhora da educação. Esses ingredientes, porém, não têm fôlego infinito – quando e se o Brasil reduzir o seu nível ainda elevadíssimo de desigualdade para padrões mais normais, nossas armas atuais de distribuição serão menos eficazes, e os mecanismos inerentes ao capitalismo apontados por Piketty podem levar a má distribuição a recrudescer.
No Brasil, apesar de toda a melhora social recente, os muito ricos são ainda pouco tributados na comparação com outros países, como mostra recente levantamento da PricewaterhouseCoopers (PWC) produzido para a BBC Brasil. É um assunto que teria tudo para esquentar o debate eleitoral.
28 de abril de 2014
Fernando Dantas
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