Há 50 anos eclodia a intervenção militar de 1964. Embora cogitada inicialmente como uma correção de rumo na desastrada ladeira por onde havia enveredado o populismo janguista, o regime castrense terminou durando mais do que se imaginara inicialmente e acabou por desgastar as Forças Armadas, em governos de força que se estenderam ao longo de duas décadas.
Esse é um período suficientemente longo como para imprimir num país diretrizes novas e, também, para cometer erros conjunturais e estratégicos. Ora, ambas as coisas precisam ser analisadas, notadamente no ambiente universitário, que deve ser, nas sociedades hodiernas, o celeiro de ideias novas, bem como o filtro por onde passam os acontecimentos à luz crítica da razão, a fim de que, com esse patrimônio de ilustração, se beneficiem as gerações futuras.
No caso da avaliação do regime militar, não foi isso exatamente o que ocorreu no Brasil. As universidades brasileiras, em especial as públicas, controladas a partir da abertura democrática pela esquerda raivosa, acabaram fazendo da memória de 1964 ato indiscriminado de repúdio aos militares e às diretrizes por eles traçadas, fazendo com que uma cortina de fumaça terminasse pairando sobre essa importante etapa da nossa vida republicana.
As coisas não mudaram com a chegada dos esquerdistas ao poder, notadamente no ciclo do lulopetismo. A criação, pelo atual governo, da "Comissão da Verdade" visando a uma "omissão da verdade" e que coloca sob os holofotes a repressão praticada pelo Estado sem, no entanto, relembrar nada do terrorismo praticado pela esquerda radical, está a revelar que pouco se progrediu nesse terreno. A finalidade prevista com a tal comissão é clara: torpedear a Lei de Anistia, que abriu as portas para a volta dos exilados e firmou o início da abertura democrática.
Falemos, inicialmente, dos desacertos de 1964. A grande falha consistiu, a meu ver, no viés autoritário do regime militar, decorrente do fato de que os profissionais das armas não estão habilitados para a chefia do Estado, toda vez que são preparados - como lembrou com propriedade o saudoso amigo Paulo Mercadante (1923-2013) em Militares e Civis: a Ética e o Compromisso (Rio de Janeiro: Zahar, 1978) - para defender com coragem e eficiência os interesses soberanos da Nação, à luz da ética de convicção weberiana, que se caracteriza pela fidelidade aos princípios, sem que haja preocupação com o resultado da ação. Falta aos nossos homens de armas a sensibilidade da ética de responsabilidade, que exige que o governante calcule, nas decisões tomadas, as consequências que decorrerão para a comunidade, sendo esta, segundo Weber, a ética dos políticos.
Em segundo lugar, anotaria mais este ponto: por formação, os militares estão preparados para gerir a unanimidade decorrente da hierarquia e da obediência do profissional das armas. Afinal, ninguém realiza assembleias no front, quando as balas silvam sobre a cabeça dos soldados. Eles cumprem as ordens dadas por seus comandantes, sem discussão. Ora, a política é o reino do dissenso, em decorrência da nossa natureza racional essencialmente dialética, condição já apontada por Aristóteles (384-322 a. C.) na sua Política.
A organização da comunidade politicamente estruturada deve ser pensada como construção de consensos a partir do dissenso, não como eliminação pura e simples deste. Esse é o difícil trabalho dos homens públicos, que precisam armar-se de dose infinita de paciência a fim de conciliar os interesses dos seus representados, os cidadãos que votaram neles.
Anotemos sumariamente os aspectos positivos do regime de 1964: a intervenção militar evitou que os comunistas tomassem o poder, instaurando uma ditadura do proletariado, com o banho de sangue que isso provocaria num país de dimensões continentais como o Brasil. A opinião pública sabe que o que a extrema esquerda buscava era isso. O Brasil não teve a sua "República das Farc", com que se debate até os dias de hoje o governo colombiano, depois de meio século de guerra, graças à corajosa intervenção das Forças Armadas, notadamente do Exército, que aniquilou a possibilidade de um território controlado pelos terroristas, sendo essa a finalidade perseguida pela guerrilha do Araguaia.
No que tange à economia, o Brasil transformou-se num país industrializado. Consolidou-se a indústria petroleira e desenvolveu-se a petroquímica, bem como a siderurgia e a fabricação de maquinaria pesada. A engenharia deu um grande salto para a frente, com as obras públicas que pipocaram pelos quatro cantos do território nacional.
Acelerou-se, por outro lado, a indústria bélica - em que pese o fato da falta de continuidade de uma política para o setor, como tem sido analisado oportunamente por Expedito Bastos, do Centro de Pesquisas Estratégicas da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Efetivou-se, com o fantástico desenvolvimento das telecomunicações e com a política de abertura de estradas, a denominada - por Oliveira Vianna (1883-1951) - "circulação nacional", unindo ao centro nevrálgico do poder as regiões mais afastadas e ligando estas às mais importantes áreas metropolitanas do País.
O regime militar tinha um propósito, em que pese o viés autoritário evidentemente criticável. Mas hoje, 30 anos após os governos militares, carecemos de um projeto estratégico que nos indique para onde irá o País nas próximas décadas.
Este é o grande desafio: costurarmos uma proposta estratégica, no contexto da democracia que conquistamos, superando o vezo tutorial que empanou o regime de 1964.
16 de março de 2014
Ricardo Vélez Rodríguez é membro do Centro de Pesquisas Estratégicas da UFJF e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e professor emérito da Escola de Comando e Estado-maior do Exército (ECEME).
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