Não dá para acreditar, mas esta verdade é bem brasileira: a União ofereceu a um pobre agricultor do Piauí, Nelson Nascimento, de 67 anos, R$ 5,39 (isso mesmo) pela indenização de sua propriedade, que corta o traçado da Ferrovia Transnordestina, uma das principais obras do PAC. A quantia, equivalente a menos de um centavo por metro quadrado, é metade do custo de uma passagem para Nascimento tomar um ônibus, no quilombo Contente, e ir ao Fórum da cidade, Paulistana, contestar o "rico dinheirinho".
A ferrovia, promessa do governo Lula, começou com orçamento de R$ 4,5 bilhões, as obras estão pela metade e o custo hoje seria mais de R$ 8 bilhões. Trata-se de um empreendimento privado, com execução pelo governo federal. A Secretaria de Transportes do Piauí, responsável pelas desapropriações, garante que o preço da indenização segue "as normas à risca". O Dnit, que firmou o convênio com a secretaria, confirma que o cálculo de R$ 5,39 obedeceu "a parâmetros usados em todas as desapropriações".
A trombeta da Justiça anuncia o veredicto: o Estado de Direito vence por nocaute o Estado do bom senso. E assim a nau da insensatez vai multiplicando seus hóspedes a cada porto em que atraca, particularmente naqueles onde as águas do nosso oceano se apresentem revoltas em razão de choques entre as correntes humanas e os braços do Estado. As ondas acabam arrebentando sobre os diques do Judiciário, que, por sua vez, estribado na interpretação das normas, nem sempre consegue equilibrar a balança da justiça, usando o peso do entendimento de Spinoza de que "justiça é uma disposição constante da alma a atribuir a cada um o que lhe cabe de acordo com o direito civil". Pior é ver que a balança dos justiceiros não raro pende para um lado, desequilibrando o sistema de freios e contrapesos, engenhosa construção que o barão de Montesquieu criou para harmonizar os Poderes.
Um exemplo? O "palpitômetro" montado para combater o Projeto de Lei 4.330/2004, que trata da terceirização de serviços, em debate na Câmara dos Deputados, e visa a formalizar a situação de 15 milhões de trabalhadores, hoje sob a égide da ultrapassada Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho (TST). Pois bem, o verbo contra esse projeto legislativo não só foi encampado pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, como recebeu o endosso de 19 ministros do TST, cuja assinatura em manifesto público escancara a tese de um prejulgamento. Imagine-se como se comportaria a plêiade de altos juízes ante a eventual aprovação de uma lei pelo Poder ao qual, de direito, cabe legislar. Sua decisão seria justa? Não estamos diante de um flagrante de controle prévio de constitucionalidade? Bacon (1561-1626) já ensinava que cabe ao magistrado jus dicere, e não jus dare - interpretar leis, e não dar ou fazer leis.
Analisemos, porém, a tese de que o juiz, como cidadão da polis, pode ser qualificado como ente político, agregando a condição de participar do processo político e opinar sobre os destinos da sociedade. Vamos ao cerne da questão. Não há dúvida quanto à identidade política do juiz, mas haverá de prevalecer em seu sistema decisório o múnus da judicatura, que abriga princípios e valores, a começar da integridade, virtude que os caracteriza. Em O Espírito das Leis, Montesquieu alertava: "Se o poder de julgar estiver unido ao Poder Executivo, o juiz terá a força de um opressor". Imagine-se, agora, uma estrutura de administração da justiça atrelada às pressões de grupos de interesses, organizações corporativas, lideranças políticas e se deixando levar pelas correntes quentes das paixões. O momento nacional sugere que façamos um mergulho nessa hipótese.
A insensatez faz-se presente na vida de outros figurantes da vida institucional. Entorta seus passos em variadas instâncias. Veja-se o caso do Ministério Público (MP), com sua função essencial à justiça, constituído por um batalhão de guerreiros em defesa da sociedade, muitos ainda jovens, mas tocados pela chama cívica. Projetos de magnitude, vitais para o desenvolvimento do País, são retardados ou mesmo se tornam inviáveis por ações impetradas pelo MP, com base em irregularidades apontadas na concessão de licenças ambientais. Recorrente indagação: os processos não estariam contaminados por vieses ideológicos, visões ortodoxas, erros de análise ou mesmo falta de informações?
Multiplicam-se queixas contra o Ibama, o órgão de licenciamento ambiental. Recorde-se o caso da perereca de dois centímetros encontrada na Floresta Nacional Mário Xavier, em Seropédica, entre a Via Dutra e a antiga Rio-São Paulo, que atrasou em um ano e meio as obras do Arco Metropolitano - 77 km de pistas que ligam Itaboraí ao Porto de Itaguaí. Solução? Um viaduto sobre o lago das pererecas. Há mais de 1.600 processos de licenciamento em curso, o que cria suspeitas sobre as razões da excessiva morosidade.
E a que atribuir o fato de a Petrobrás ter gasto US$ 1,18 bilhão, em 2009, na compra de uma refinaria em Pasadena, no Texas (EUA), que custou, em 2005, US$ 42,5 milhões? Má gestão ou "possível compra superfaturada de ações pela Petrobrás", nos termos do Ministério Público Federal?
Da insensatez para a desfaçatez o salto é menor que o da perereca fluminense. É só olhar para o Ceará, onde o governo do Estado pagou caro artistas contratados para shows. Chegaram a custar até oito vezes mais que o preço pago em outros Estados. Na inauguração de um hospital em Sobral, o cachê da cantora Ivete Sangalo foi de R$ 650 mil. Um mês depois uma chuva derrubou a fachada do estabelecimento. Na abertura de um centro de eventos, o tenor Plácido Domingo embolsou R$ 3,1 milhões. Artistas desse porte devem ganhar isso mesmo. A questão é saber se um Estado carente de serviços básicos pode esbanjar seus parcos recursos. Ora, no Brasil, tudo é possível.
29 de setembro de 2013
GAUDÊNCIO TORQUATO É JORNALISTA, PROFESSOR TITULAR DA USP, CONSULTOR POLÍTICO DE COMUNICAÇÃO.
O Estado de São Paulo
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