"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

AQUARIUS

‘Aquarius’ já não tem admiradores, mas militantes. Não amar o filme é de repente se ver posicionado na luta de classes — contra o povo oprimido. Não amá-lo é discurso de ódio

É produtivo refletir sobre como o enredo dos golpeados encontrou na carreira de “Aquarius” uma trilha por meio da qual prosperar — e faturar. Preterido na disputa por (tentar) representar o cinema brasileiro no Oscar, Kleber Mendonça Filho, diretor do filme, não bobeou em — fiel ao script totalitário de que é um dos formuladores — associar a escolha de “Pequeno segredo”, de David Schurmann, à “realidade política do Brasil”.

E qual seria “a realidade política do Brasil”, segundo Kleber Mendonça Filho? O leitor decerto se lembra do último Festival de Cannes, em que parte da equipe de “Aquarius” denunciou — cartazes em punho — o que seria um golpe contra a democracia brasileira, sinônimo petista para tudo quanto se oponha e resista ao projeto de perpetuação no poder de Lula e do Partido dos Trabalhadores. Ali, o cineasta fez uma opção. Não para si, mas para seu filme. Ali, para além do que vai na tela, ele apresentou também o roteiro de como “Aquarius” deveria ser projetado por seus divulgadores e percebido pelo público. Ali, definiu o tom, a realidade — a narrativa, esta maldita — à qual submeteria sua arte e com a qual operaria a mais oportunista campanha de marketing da história do cinema nacional.

Foi Kleber Mendonça Filho quem politizou — a não poder mais reverter — o destino de seu filme, obra que amarrou, com método, ao desfecho do processo de impeachment. E aqui, pois, estamos.

Onde estamos?

Dilma Rousseff teve o mandato cassado pelo Congresso Nacional. Foram longos meses de trabalho no Parlamento, em que a ex-presidente — apesar da irresponsabilidade petista, que pretendeu rasgar o texto constitucional e deslegitimar Câmara e Senado — teve amplo direito à defesa. Ela mesma, Dilma, compareceu diante dos que a golpeavam, num dia em que Chico Buarque integrou a excêntrica comitiva de convidados-golpeados-oficiais da golpeada-mor.

Kleber Mendonça Filho, por sua vez, teve cassado o mandato — divino — segundo o qual seu filme seria o aclamado representante do Brasil no pleito por (tentar) disputar o Oscar. Foram longas semanas de pressão, de assessoria de imprensa vestida de jornalismo, de difamação, de fofoquinha, de menosprezo aos concorrentes (eram 15, os fantasmas), de mi-mi-mi (nunca terá havido tantas Gleisis, tantos Lindberghs), de conchavo entre cineastas, de coação, de intimidação intelectual, de tentativa de calar o contraditório, de desrespeito a uma comissão julgadora previamente escolhida, período no curso do qual parecia só haver “Aquarius” — até que, não!, o colegiado, soberano, desautorizou a imposição da corriola, peitou os donos do cinema brasileiro e selecionou outro que não o filme do golpe.

Onde estamos?

Ainda não estamos. Porque antes convém destrinçar — à luz desse histórico — o que vai dito quando Kleber Mendonça Filho costura a não indicação de “Aquarius” à “realidade política do Brasil”. Sim, ele se vitimiza. O golpe também é contra ele. Isso é evidente, lucrativo — e integra a estratégia da guerrilha criativa, que necessita de perseguições forjadas, de conspirações inventadas, de censuras fabricadas. Já o fizera, aliás, contra a classificação indicativa do filme, estabelecida em 16 anos — algo que, claro, só poderia decorrer de retaliação do Ministério da Justiça golpista.

Agora, com “Aquarius” nos cinemas, recorre-se ao expediente de desqualificar aqueles que não veem tanta genialidade assim no filme, deslocando o gosto puro e simples para o terreno da política — como se o desencanto não pudesse existir, não em relação a “Aquarius”, sem uma intenção partidária. (A turma é generosa, no entanto; porque você, que não apreciou o filme, pode não ter maldade nisso, pode nem perceber que, na raiz de não lhe ter gostado, há uma deformação de extrema-direita.)

Já não é aceitável considerar “Aquarius” uma obra comum, mediana ou mesmo correta, boa, legalzinha, sem que sobre essa modesta impressão individual recaia o juízo de que fruto de um olhar ideológico. (Só Kleber Mendonça Filho e o pessoal do Edifício Solaris — ops!, perdão, Aquarius — podem manipular a política e a ideologia.) Assim, o filme já não tem críticos, mas inimigos. Já não tem admiradores, mas militantes. Diga, com base nos números, que não é um sucesso de público — e leve um “Fora, Temer!” na cara. Não amar “Aquarius” é de repente se ver posicionado na luta de classes — contra o povo oprimido. Não amar “Aquarius” é discurso de ódio. Bolsonaro!

Onde estamos?

Próximos ao momento em que não será mais possível contrariar um petista (os interesses de um petista) sem ser chamado de canalha, de golpista. E isso tem nome: fascismo.



21 de setembro de 2016
Carlos Andreazza é editor de livros. O Gloob

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